EM NOME DE AMÉLIA
A pior das injustiças é a que petrifica uma personagem em um bloco de gelo
histórico que nunca derrete. Isso acontece quando um equívoco é tão fortemente
construído que não só congela a vítima como qualquer voz que se levante em sua
defesa.
Nessa moldura, a mulher mais injustiçada da nossa história é, sem dúvida,
Amélia. Sim, ela mesmo, a mulher de verdade.
Essa genial criação de Mario Lago, maquiada com maestria por Ataulfo Alves,
transformou-se, por força de uma leitura equivocada, no símbolo mais popular da
mulher burra e submissa.
Difícil saber quem produziu esse monstruoso equívoco. Impossível continuar
repetindo este absurdo.
Basta ouvir a canção, sem preconceito, para ver que Amélia é exatamente o
contrário do que falam. Ela é vítima de uma campanha negativa que precisa ser
destruída. Trata-se de um bom tema para ser discutido na semana do Dia
Internacional da Mulher.
Quem, em sã consciência, pode encontrar na letra de "Ai, que saudades da
Amélia" a descrição de uma deusa estúpida e cativa?
A canção começa com o amado ressentido, dizendo, em tom quase pungente :
"Nunca vi fazer tanta exigência/ nem fazer o que você me faz/ você não
sabe o que é consciência/ nem vê que eu sou um pobre rapaz".
As duas palavras-chaves (exigência e consciência) e a expressão humilde e
igualitária (pobre rapaz) já insinuam o sentido verdadeiro da queixa-revelação.
Segue adiante: "Você só pensa em luxo e riqueza/ tudo que você vê você
quer/ ai, meus Deus, que saudades da Amélia/ aquilo sim é que era mulher".
Peraí. Não estaria o amado a criticar, com toda a razão, a sua mulher atual,
que é frívola, dependente e consumista?
Não estaria criticando, sem nenhum sotaque machista, uma mulher que poderia,
hoje, "brilhar" no reality show "Mulheres Ricas"?
Como essa mulher frívola e bizarra venceu, no imaginário brasileiro, a figura
solidária, carinhosa e sensual de Amélia?
Amélia "às vezes passava fome ao meu lado/ e achava bonito não ter o que
comer" e "quando me via contrariado, dizia 'meu filho, o que se há de
fazer?'".
O que é mais "feminista" e maravilhosamente poético? Passar fome,
lutando de forma solidária e independente ao lado do amado, sendo seduzida e
sedutora, sempre capaz de convidá-lo, sutilmente, para saciar no sexo a fome do
estômago (é isso que está embutido no verso "o que se há de fazer?")
ou, ao contrário, fazer compras com o dinheiro do marido, em vez de fazer amor,
com muito gosto e prazer, com ele?
O que é mais "moderno" e mais pop? Ser naturalmente bela, sem a
"menor vaidade", ou ser uma megera neurótica, opressora, perdulária e
exigente?
Já está na hora de as mulheres e de os homens brasileiros recolocarem a
maravilhosa Amélia no seu devido lugar: o nosso panteão de musas. Vamos erguer,
hoje, um brinde a esta mulher de verdade e pedir perdão pelo que fizeram,
injustamente, com sua memória.
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