quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

COLUNA DO ARTHUR NETO


HIPOCRISIA II

Lisboa – Sou obrigado a voltar ao tema, sem nenhum desejo de contrariar os “funcionários” das redes sociais. É que o PT e seu governo são hipócritas em dose dupla: apropriam-se de obras alheias; são uma coisa na Bahia, solidarizando-se com um governo sem autoridade como o de Jacques Wagner, e outra quando fazem oposição a algum governador; privatizam – e isso não é errado – e insistem em dizer que apenas “concederam” os aeroportos. São, enfim, os mestres da desfaçatez e do oportunismo politico.

Voltando a Jacques Wagner, ressalvo, de pronto, que sou e sempre fui contrário a greves feitas por gente armada. Bem diferente dele que, na Bahia, apoiou (e dizem que financiou) uma, dessa mesma Polícia Militar, em 1992, quando o governador era ACM, e outra em 2001, na gestão de Cesar Borges, do então PFL.

Mas falemos da privatização dos aeroportos, medida de governo correta, lamentavelmente adotada com muito atraso. Detalhes e alguns reparos ao negócio, deixarei, quem sabe!, para o HIPOCRISIA (III).

O Estado não tinha como investir no setor. O governo não revelou capacidade gerencial para bem administrar os principais aeroportos brasileiros. Somente o preconceito ideológico estúpido e insincero atrasava o processo.

Agora as lideranças petistas se perdem “envergonhadas” do que fez o governo, elas que não se envergonham, por exemplo, do mensalão. Diz uma: “privatizamos um setor que não é importante; não faríamos isso com algo estratégico como a mineração”. Os leitores já leram ou ouviram tolice maior? Quer dizer então que a estrutura aeroportuária de um país não se reveste de peso estratégico?

Mas vem outra e se esconde: “diferentemente de Fernando Henrique, que privatizou, nós apenas concedemos”? “Concederam”? Lembrei-me da Bruna Surfistinha do filme, que “distribuía”. Eufemismos vãos, que somente mostram falta de coerência e de seriedade intelectual.

Fernando Collor privatizou, Itamar Franco privatizou, Fernando Henrique privatizou, Lula privatizou e Dilma seguindo, agora, o curso histórico, privatizou também. É por aí que a economia se moderniza e prepara o país para crescer de verdade, sustentavelmente.

E ainda falta quase tudo, em termos de recuperação, atualização e constituição da infraestrutura brasileira.



"De olho no voto moderado, o PT não quer para si os ônus do radicalismo ultraminoritário, mas pretende sempre recolher os bônus de apresentar-se como a solução ideal para evitar essa modalidade de movimento político. Como se, em algum lugar do mundo ou momento da história, o extremismo, de direita ou de esquerda, tivesse sido contido apenas com diálogo e negociação. É um discurso conveniente, pois se apresenta como alternativa “racional” de poder. Uma vez lá, os tais movimentos serão cooptados na base da fisiologia e, se necessário, da repressão. Os críticos exigirão “coerência”, e o partido fará ouvidos moucos."


A Era do Oportunismo

As últimas semanas trazem acontecimentos reveladores de um aspecto peculiar da “luta política” no Brasil, como a entendem o PT e o governo que ele lidera. Poderia ser resumido em dois conceitos: o relativismo como ideologia e a tática de recolher dividendos políticos sem se envolver diretamente, tirando, como se diz, a castanha do fogo com a mão do gato.
A moral da fábula do macaco esperto, que, faminto, mandava o bichano recolher as castanhas das brasas, esteve visível nos sucessivos movimentos na USP. A chamada extrema esquerda desencadeou ações violentas, e o petismo saiu a criticar a “falta de diálogo” e a “falta de democracia”, que supostamente estariam na raiz dos distúrbios.
De olho no voto moderado, o PT não quer para si os ônus do radicalismo ultraminoritário, mas pretende sempre recolher os bônus de apresentar-se como a solução ideal para evitar essa modalidade de movimento político. Como se, em algum lugar do mundo ou momento da história, o extremismo, de direita ou de esquerda, tivesse sido contido apenas com diálogo e negociação. É um discurso conveniente, pois se apresenta como alternativa “racional” de poder. Uma vez lá, os tais movimentos serão cooptados na base da fisiologia e, se necessário, da repressão. Os críticos exigirão “coerência”, e o partido fará ouvidos moucos.
Mas a vida é mais complicada do que esses esquemas espertos. À medida que vai acumulando força, o PT precisa lidar com desafios concretos, e aí surge a utilidade do relativismo. Querem um exemplo? Quando um governante adversário cuida de garantir o cumprimento da lei e de manter a ordem pública, o aparato de comunicação sustentado com verbas públicas sai a campo para denunciá-lo, atacá-lo, desgastá-lo a qualquer custo. Quando, no entanto, esse governante é do PT ou aliado próximo, a posição inverte-se.
Se o adversário cumpre a lei, é acusado de “criminalizar os movimentos sociais”; quando um deles cumpre a mesma lei, então são eles a criminalizar. Assim, os PMs em greve na Bahia governada pelo PT são chamados de “bandidos”. Cadê o exercício do entendimento, a tolerância? Em São Paulo, em 2008, o PT ajudou na organização de uma marcha de policiais civis grevistas em direção ao Palácio dos Bandeirantes — marcha que, felizmente, não atingiu os objetivos sangrentos almejados.
Em estados governados pelo petismo e aliados, são rotineiras as reintegrações de posse, mas quando precisa acontecer em São Paulo, por exemplo, a mando da Justiça e sempre sob a sua supervisão, o PT – e eis de novo a história das castanhas – cavalga o extremismo alheio para denunciar inexistentes violações sistemáticas dos direitos humanos. Nunca ofereceu uma possível solução ao problema social específico, mas apresenta-se incontinenti quando sente a possibilidade de sangue humano ser vertido e transformado em ativo político.
Vivemos uma era em que o oportunismo político do PT acabou ganhando o status de virtude. Perde-se qualquer referência universal ou moral de certo e errado, e essa separação é substituída por outra. Se é o partido quem faz, tudo será sempre correto — os fins justificam os meios, seja lá quais forem esses fins. Se é o adversário, tudo estará sempre errado, pois suas intenções sempre seriam viciosas. A política torna-se definitivamente amoral.
É uma lógica que acaba derivando para o cômico em algumas situações. No atual governo, os ministros foram divididos em duas classes. Alguns são blindados, podem dar de ombros quando são alvos de acusações; outros são lançados ao mar sem muita cerimônia. Quando é do PT, especialmente se for do grupo próximo, a proteção é altíssima. Mas, se tiver a sorte menor de ser apenas um “aliado” — conceito que embute a possibilidade de se tornar futuramente um adversário —, logo aparecem os vazamentos dando conta de que “o Palácio” mandou o infeliz explicar-se no Congresso, a senha para informar aos leões que há carne fresca na arena.
Essa amoralidade essencial estende-se às políticas públicas. Em 2007, quando governador de São Paulo, aflito com o congestionamento aeroportuário, propus ao presidente Lula e sua equipe a concessão à iniciativa privada de Viracopos, cujo potencial de expansão é imenso. Nada aconteceu. Na campanha eleitoral de 2010, a proposta de concessões foi satanizada. Pois o novo governo petista adotou-a em seguida! Perdemos cinco anos! E adotou-a privatizando também o capital estatal: o governo torna-se sócio minoritário (49% das ações) e oferece crédito subsidiado (pelos contribuintes, é lógico) do BNDES. Tudo o que era pra lá de execrado passou a ser “pragmatismo”, “privatização de esquerda”.
O ridículo comparece também à internet, onde a tropa de choque remunerada, direta ou indiretamente, com dinheiro público e treinada para atacar a reputação alheia desperta ou se recolhe em ordem unida, não conforme o tema, mas segundo os atores. São os indignados profissionais e seletivos. Como aquelas antigas claques de auditório, seguindo disciplinadamente as placas que alternam “aplaudir”, “silenciar” e “vaiar”.
Vivemos tempos complicados, um tanto obscuros, algo assim como “se Deus está morto tudo é permitido” — e chamam de “pragmatismo” o oportunismo deslavado. A oposição, a despeito de notáveis destaques individuais, confunde-se no jogo, dado o seu modesto tamanho, mas também porque alguns são sensíveis aos eventuais salamaleques e piscadelas dos donos do poder. Um adesismo travestido de “sabedoria”. A política real vai se reduzindo a expedientes necessários à manutenção do poder e à mitigação do apetite dos aliados. A conservação do status quo supõe uma oposição não mais do que administrativa e burocrática. Parece que a nova clivagem da vida pública é esta: estar ou não na base aliada, de sorte que a política se definiria entre os que são governo e os que um dia serão.
Não sou o único que pensa assim, mas sou um deles: política também se faz com princípios, programa e coerência. E disso não se pode abrir mão, no poder ou fora dele.
Estadão / Opinião / Espaço Aberto /09/02/2012.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

AEROPORTOS BRASILEIROS DECOLAM

AEROPORTOS BRASILEIROS DECOLAM

COLUNA DO ARTHUR NETO


ZONA FRANCA

Lisboa – Vai perdendo força o discurso ufanista dos que não querem ver ou – fingem não querer – enxergar o profundo dilema em que se debate a Zona Franca de Manaus. As tecnologias mais novas ficam cada vez mais distantes do Polo Industrial de Manaus. As menos dinâmicas, que vão caducando, são mantidas no Amazonas, como prêmio de consolação, que sequer durará muito tempo.

Tudo isso sem levar em conta o caos logístico que estrangula nossa economia. E que poderia muito bem estar sendo eliminado, se tivesse havido vontade política para tal.

Tudo isso levando em conta que os incentivos fiscais, que beneficiam a Zona Franca, vêm perdendo força com muita rapidez, no cotejo com estados que promovem a guerra fiscal e oferecem logística melhor do que a nossa. Antes, nossas vantagens comparativas eram inquestionáveis. Atualmente, elas valem relativamente menos. Cada vez mais relativamente menos.

Tudo isso levando em conta os seguidos golpes que o governo federal insiste em aplicar num modelo vitorioso que, no entanto, está em crise latente e poderá vir a entrar em agonia.

Por isso insisto tanto na repactuação do projeto ZFM. Inclusive para passarmos a aproveitar os recursos da magnífica biodiversidade a nossa volta.

Se tem um assunto em que eu preferiria estar errado é justamente este. Lamentavelmente, poucas vezes estive tão convencido de alguma coisa.

Dormir em berço esplêndido equivalerá a negar e anular o futuro.

Despertar para a luta engrandecerá todos aqueles que tiverem a humildade de reconhecer o tempo que já perdemos. 

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

COLUNA DO ARTHUR NETO


SÍMBOLO FORTE

Lisboa – Semana passada, falamos de drogas aqui neste espaço. Abordei a vulgarização do crack e do oxe, que viciam, já nas primeiras experiências, os que deles se aproximam. E preguei a necessidade, urgente-urgentíssima de se colocar em prática uma política nacional de enfrentamento a essa verdadeira epidemia.

Essa política, a meu ver, deveria ser liderada pelo governo central, com a participação dos estados, das prefeituras, do aparato do Judiciário e, sem dúvida, do terceiro setor. Nada mais urgente do que isso, porque o Brasil corre o sério risco de se mexicanizar e perder a batalha contra o crime organizado, contra a máfia dos traficantes de drogas, armas e seres humanos. No fundo, aliás, dá para se dizer que nem todo mundo que trafica drogas trafica armas e pessoas; dá para se dizer que nem todo mundo que trafica pessoas, trafica armas, porém dá para dizer que, muito dificilmente, os traficantes de armas e pessoas não haveriam de ser, também, traficantes de drogas.

Temos fronteiras enormes, escancaradas, veias abertas por onde circula o mal, apesar do valor e da coragem da Polícia Federal e do Exército brasileiro. Outro dia, vi, na Globonews, um Procurador de Justiça italiana declarar que nosso país, hoje, é verdadeira agência reguladora dos preços internacionais da cocaína, até porque passagem obrigatória de grande parte desse "produto". Isso é de dar muita tristeza mesmo.

Pois abro os jornais e leio que número expressivo de manifestantes protestou, em frente ao Congresso Nacional, contra a expansão do mercado do crack. Colocaram 513 pedras, cada uma delas simbolizando um deputado federal, cobrando energicamente exatamente o que me salta aos olhos da face: uma política nacional de combate às drogas.

Ou seja, não dá mais para adiar.

UMA COMPRA MILIONÁRIA!

PAUL CÉZANNE

Qatar compra por 250 milhões de dólares o quadro do pintor francês, Paul Cézanne (1839-1906). O quadro chama-se Les Joueurs de Cartes, pintado no período 1892-1895.



Cézanne foi contemporâneo de mais três grandes pintores, que lideraram o movimento Impressionista/Expressionista na Europa, no século XIX: Gustav Klimt (1862-1918) e Egon Schiele (1890-1918), austríacos e Claude Monet (1840-1926), também francês.

Estive em uma exposição comemorativa desse Movimento Artístico, em 2001, em Roma, quando adquiri dois posters (não telas) de Egon Schiele, que é o que “podia” comprar, por 125.000,00 liras. Era véspera do Euro.  São lindas pinturas de mulher.

"COMO É COMPLEXO E CONTROVERTIDO ESSE IRÃ QUE PRODUZ AIATOLÁS, FABRICA UM TIRANO COMO MAHMOUD AHMADINEJAD E A BOMBA ATÔMICA (SUPOSTAMENTE), E CRIA UM REGIME JURÍDICO QUE AUTORIZA A MORTE DE ADÚLTERAS A PEDRADAS, AO MESMO TEMPO EM QUE FORNECE AO MUNDO UM CINEASTA COMO ESSE ASGHAR FARHADI, QUE FAZ PARTE DE UM TIME QUE JÁ DEU AO CINEMA IRANIANO CENTENAS DE PRÊMIOS NOS ÚLTIMOS ANOS E QUE, APESAR DISSO, É DURAMENTE PERSEGUIDO PELO GOVERNO."

FAZER FILME NO IRÃ

Depois de assistir ao extraordinário "A separação", candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro, não há como não pensar em como é complexo e controvertido esse Irã que produz aiatolás, fabrica um tirano como Mahmoud Ahmadinejad e a bomba atômica (supostamente), e cria um regime jurídico que autoriza a morte de adúlteras a pedradas, ao mesmo tempo em que fornece ao mundo um cineasta como esse Asghar Farhadi, que faz parte de um time que já deu ao cinema iraniano centenas de prêmios nos últimos anos e que, apesar disso, é duramente perseguido pelo governo. Só no ano passado cerca de 50 deles foram presos, inclusive a atriz Marzieh Vafamehrha, condenada a um ano de prisão e 90 chicotadas por interpretar num filme uma jovem que tenta deixar o país por não suportar mais o sufoco político.

Outro condenado, Jafar Panahi, ficou famoso por ter desafiado a proibição de filmar por 20 anos, realizando "Isto não é um filme" em prisão domiciliar, enquanto aguardava a confirmação da sentença de seis anos de detenção. Feito com a ajuda de um amigo também diretor, o "autodocumentário" em que Panahi aparece lendo o roteiro do filme que não pôde fazer, saiu do país num pen drive escondido dentro de um bolo e, levado ao Festival de Cannes, foi aclamado.

"A separação" é diferente. Não é um manifesto político, não denuncia, por exemplo, que a vida de uma mulher no Irã vale legalmente a metade da de um homem, tanto quanto seu testemunho perante um juiz, e nem mostra chibatadas ou execuções a pedradas. Trata-se da história de dois casais, um dos quais de classe média em processo de divórcio: a mulher quer partir com a filha adolescente para um país do Ocidente, mas o homem se recusa a acompanhá-la, alegando a doença do pai, que sofre de Alzheimer. O outro casal entra no episódio por acaso. 

Há um incidente, um empurrão, um tombo, a morte de um bebê por nascer, e os quatro vão parar num tribunal de pequenas causas, onde se passa grande parte do filme. A conexão entre esses fatos da vida privada e o pano de fundo político, religioso e social do Irã é tecida de maneira sutil, afastando o óbvio e o explícito. O conflito é desenvolvido por meio de diálogos que estabelecem um debate moral e ético entre os personagens. Primoroso do ponto de vista cinematográfico, "A separação" prova que, quando bem feito, um filme sobre cenas do cotidiano doméstico pode ser tão ou mais eficaz politicamente do que um panfleto de claras intenções políticas.

Farhadi explica sua opção comparando o ato de fazer cinema no Irã a uma luta de boxe. Segundo ele, há pugilistas que se movimentam muito, "desferindo golpes a torto e a direito. E há os mais tranquilos, observadores, que esperam o rival baixar a guarda para desfechar seu golpe. Faço parte deste segundo grupo".

O GLOBO / BLOGS / RÁDIO DO MORENO / 01.02.2012.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012


DESRESPEITO

Lisboa – Leio nos jornais que os peixes estão morrendo asfixiados na Lagoa de Marapendi, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os "assassinos" diretos são os elevados volumes de lixo, detritos de toda sorte, que apodreceram águas outrora saudáveis e belas. Os "mandantes" do crime são a sucessão de governos que não fiscalizam, a especulação imobiliária, a desordem urbana que transforma o bonito em feio.

Vi também, faz algum tempo, a foto solitária de um jacaretinga, insistindo em sobreviver à podridão de um igarapé de Manaus. Nem sei do que ele se pode estar alimentando. Talvez tenha aprendido a comer lixo, porque peixe mesmo não tem, naquele nível tão elevado de poluição.

Existe uma palavra, não necessariamente mágica, que deveria ser obrigatória na vida de todos nós: SUSTENTABILIDADE. Produto saído da depredação e da ganância não deveria ser comprado pelas pessoas e pelas boas empresas. Acho, aliás, que o mundo marchará nessa direção: se alguém quiser exportar o que produz, cuide de assegurar o selo verde. O próprio instinto de sobrevivência dos seres humanos terminará exigindo que seja assim.

Sempre pode aparecer algum falso "progressista" que indague: "mas ele está preocupado com os peixes da lagoa lá no Rio de Janeiro e com o jacaretinga que chafurda na lama de um igarapé manauara? Será que não existem outros problemas mais graves, envolvendo pessoas, mexendo com fatos mais sérios?" Eu responderia a essa ponderação ressaltando, em primeiro lugar, que uma preocupação não impede a outra; ou seja, dá sim para andar e mascar chicletes ao mesmo tempo. Argumentaria, a seguir, que uma sociedade que deixe degradar a sua paisagem está construindo a desgraça social e não qualquer coisa parecida com verdadeiro "progresso". Finalizaria afirmando que o resultado da especulação imobiliária e do crescimento desordenado é sempre a concentração de renda nas mãos de poucos privilegiados; os mais pobres ficam com as favelas, com as moradias insalubres, com a amargura cotidiana.

Vejo clara ligação entre cidades equilibradas e realizadas na sustentabilidade e ambiente econômico mais justo. Claro que o inverso, para mim, é verdadeiro: cidades desequilibradas e "desenvolvidas" à base de ações irresponsáveis e insustentáveis levam, inevitavelmente, a uma taxa mais elevada de pobreza e infelicidade social.

Poderia ser diferente. Deveria ser diferente. Teria de ser diferente.

Poderia ser melhor. Deveria ser melhor. Teria de ser melhor.

domingo, 5 de fevereiro de 2012


CRER E PERSEVERAR

Nas duas últimas semanas apareceram alguns artigos na mídia que ressaltam o silêncio das oposições como um risco para a democracia. É inegável que está havendo uma "despolitização" da sociedade não só no Brasil, mas em geral. O "triunfo do mercado" levou às cordas as colorações políticas. Parece que tudo se deve medir pelo crescimento do PIB. Nos países bem-afortunados, ainda que cheios de "malfeitos", não há voz que ressoe contra os governos. Nos que caem em desgraça sem terem feito a "lição de casa" - sem terem gerado um "superávit primário" -, aí sim, os governos em exercício pagam o preço. Caem porque são vistos como incapazes de assegurar o bom pagamento aos mercados. Não importa ser de coloração mais progressista ou mais conservadora. Caem sem que tenha havido um debate político-ideológico que mostre suas fraquezas eventuais, mas porque o rancor das massas gerado pelo mal-estar econômico-financeiro se abate sobre os líderes do momento.

O Brasil esteve até agora ao abrigo da tempestade que desabou sobre os mercados dos Estados Unidos e da Europa. Por mais que nossos governos errem, os decibéis das vozes oposicionistas são insuficientes para comover as multidões. Pior ainda quando essas vozes estão roucas ou preferem sussurrar. Como entramos em céu de brigadeiro a partir de 2004, tanto pela virtude do que fizemos na década anterior como pelos acertos posteriores e graças à ajuda dos chineses, fazer oposição tornou-se um ato de contrição.

Mas que importa? Também era assim no período do milagre dos anos 1970, durante o regime militar. A oposição nada podia esperar, a não ser censura, cadeia ou tortura. Não obstante, não calou. Colheu derrotas eleitorais e políticas, resistiu até que, noutra conjuntura, venceu. Hoje a situação é infinitamente mais fácil e confortável. Só que falta, o que antes sobrava, a chama de um ideal: queríamos reabrir o sistema político. Hoje o que queremos? Ganhar as eleições? Mas para quê?

Eis o enigma. Não faltam candidatos. Ainda recentemente, em conversa analítica que fiz com uma jornalista da The Economist, ressaltei que há vários, e não só no PSDB. Neste o mais conhecido e denso, José Serra, amadurecido por êxitos e derrotas, não conseguiu deixar clara em 2010 sua mensagem, embora tenha obtido 44% dos votos. O isolamento em que sua campanha ficou, dadas as dissonâncias internas do PSDB e as dificuldades para fazer alianças políticas, impediu a vitória. Se o candidato tivesse expressado com mais força as suas convicções, mesmo desconsiderando o que as pesquisas de opinião indicavam ser a demanda do eleitorado, poderia ter sensibilizado as massas.

Quem sabe por este caminho se decifre o enigma: falar à sociedade, com força e veemência, tudo o que se sente, inclusive a indignação pela corrupção, pela incompetência administrativa e, sobretudo, pelo escândalo de uma sociedade que se faz mais rica com um governo que distribui muito pouco, faz propaganda do que não concretizou inteiramente e coloca no altar os "vencedores", mesmo quando estes ganham à custa do dinheiro do povo, que paga impostos cada vez mais regressivos.

Outro, mais óbvio provável candidato, graças à posição eleitoral dominante em seu Estado e ao seu estilo de fazer política, Aécio Neves, está em fase de teste: transmitirá uma mensagem que salte os muros do Congresso e chegue às ruas? Encarnará a mudança com a energia necessária e o desprendimento que é o motor da ousadia, arriscando-se a dizer verdades inconvenientes, e aparentemente custosas eleitoralmente, para que o povo sinta que existe "outro lado" e confie nele para abrir perspectivas melhores?

Refiro-me aos dois por serem os mais cogitados no momento. Não são os nomes que importam agora, mas a disposição de correr riscos e de sair da armadilha da briga partidário-eleitoral para entrar na grande cena da opinião pública e - façamos a distinção - da opinião popular. É evidente que o governo, qualquer governo, leva vantagens, principalmente desde que o lulopetismo instalou a regra de que tudo vale para manter o poder: clientelismo, propaganda abusiva, uso continuado da máquina pública, etc. Entretanto, também no regime militar o governo levava vantagens. Mas nós lutávamos não para ganhar no dia seguinte, mas para criar um horizonte de alternativas.

A elucidação do enigma requer perseverança e coragem. Eu ganhei duas eleições no primeiro turno contra Lula porque tinha uma mensagem: a da estabilização da economia com o Real e o início da distribuição de rendas. Mesmo sem propagandear, a pobreza deixou de atingir mais de 15 milhões de pessoas com a estabilização dos preços e a política de aumentos reais do salário mínimo, que começou em 1994. Não foi fácil ganhar os apoios para pôr em ação o Plano Real, precisei brigar muito. Lula ganhou porque pregou, no início no deserto, ser ele o portador da mensagem que levaria a um mundo melhor. Perseverou, rodou o Brasil, abandonou a tribuna parlamentar e, no começo, desprezou a mídia. Mostrou-se audacioso, desprendido e generoso. Se sinceramente ou não, é outra questão: a Carta aos Brasileiros está à disposição dos historiadores para que julguem. Mas o povo acreditou.

É esta a verdadeira questão da oposição, e deveria ser a preocupação dos pré-candidatos: mergulhar nos problemas do povo, falar de modo simples o que sentem e o que se pode fazer. Sem meias palavras e sem insultos. Sem falácia, com muita convicção. Politizar a cena pública para assegurar a democracia. Dizer quem é bom, ou melhor, o que é bom e o que é mau. Mas dizer nas universidades, nas organizações populares, nas associações profissionais, nas pequenas e médias cidades. Preparar nelas a mensagem - o discurso - para mais tarde falar com credibilidade na grande cena nacional.

Quem o fizer terá chances de ser o candidato da oposição e, eventualmente, ganhar as eleições. Isso independe de manobras de cúpula, simpatias e interesses menores.
Não se pense que nossa realidade será sempre o que hoje parece ser: uma sociedade conformada, legendas eleitorais disputando mordomias no dá-cá-toma-lá entre governo e congressistas e a voz do governo a tonitruar como um trovão divino, a que todos se curvam prestimosos. É só mudar a conjuntura e a cena muda, se a oposição apresentar alternativas. Mesmo que não mude, nada deve alterar nossos valores e convicções. Continuemos com eles, pois "água mole em pedra dura tanto bate até que fura". 

O Estado de São Paulo / Notícias / Espaço Aberto / Crer e Perseverar / 05 de fevereiro de 2012