quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Judiciário e sua imagem em transe

06 de outubro de 2011 | 3h 05

A imagem do Poder Judiciário no Brasil está sub judice. Em coisa de poucos dias, entrou num transe midiático. Não se sabe onde vai parar. Nem como. Nem se. Há uma semana, a tensão que vinha sendo administrada como assunto interno dos juízes explodiu nas manchetes. A percepção que os brasileiros têm dos seus magistrados não será mais a mesma.
Estamos passando por um terremoto simbólico, que vem abalando os significados mais tradicionais da instituição. Há apenas uma semana, as placas tectônicas que serviam de alicerce ao edifício da Justiça no Brasil começaram a trepidar em público. Surgiram fissuras no chão dos tribunais: disjunções de sentido encheram o ar de incertezas - éticas, mais que jurídicas. Ministros das altas Cortes descuidaram do linguajar polido, a ponderação e a prudência abriram lugar para discursos raivosos. Juízes deixaram de falar como árbitros. Agora, eles se exasperam como partes inflamadas. Os jurisconsultos, aos quais cabe fazer justiça, atiram-se na arena pública para clamar por... justiça. Justo eles. Diante do noticiário, o homem comum se pergunta: a quem reclamarão seus direitos os jurisconsultos ofendidos? Ao povo?
Mas o noticiário não responde. As capas dos jornais lançam novas dúvidas. O diálogo entre ministros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deixa de lado a serenidade. Eliana Calmon, corregedora do órgão, falou de "bandidos que se escondem atrás da toga". Em referência ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), foi jocosa: "Sabe quando vou inspecionar o TJSP? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro". Em resposta, o ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e também do CNJ, qualificou as declarações de sua colega como "um atentado ao Estado Democrático de Direito". E disse mais: "Em 40 anos de magistratura, nunca li uma coisa tão grave".
A situação, porém, é mais grave do que a leitura que o ministro Peluso faz dela. As palavras que ele leu são apenas o reflexo de um deslocamento mais profundo, tectônico. Fosse apenas o vernáculo, seria simples. Lembremos que, há poucos anos, os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes se insultaram no plenário do Supremo e nem por isso a imagem da instituição sofreu arranhões mais comprometedores. Ambos passaram por deselegantes, talvez, mas o Poder que representam saiu incólume. Agora o cenário é outro. A turbulência não se reduz a destemperos verbais: resulta do afloramento de um choque mais antigo, que caminhava no subterrâneo e de repente veio a público, de modo espetacular. É nesse choque que mora o problema.
Não temos os elementos para traçar uma radiografia das câmaras internas do Judiciário, mas uma análise atenta dos fatos - e de seu significado no noticiário - fornece os dados para uma compreensão mais ampla da crise de imagem. Na grande narrativa histórica que é a construção da democracia no Brasil, o signo do Poder Judiciário começou a resvalar para o polo da resistência a uma demanda central da sociedade: a transparência. Isso se traduz no embate que era interno e agora ficou explícito.
Na cúpula do Judiciário, duas vertentes opostas que se batem. A primeira encarna o valor democrático da transparência, a outra prefere o conforto do corpo opaco. A transparência do Estado tornou-se indispensável para o aprimoramento da normalidade democrática. Resistir a ela significa resistir à modernização das instituições. Acontece que, em capítulos cruciais da História recente - a nossa narrativa histórica -, o Judiciário, infelizmente, aparece como um signo que se alinha aos que preferem a opacidade.
Essa associação de sentidos não ocorre porque os jornalistas são maldosos. Ela é natural. É lógica. O problema não está na intenção oculta dos relatos, mas na significação expressa dos fatos que se sucedem. Basta olhar para eles.
Sabemos que uma das distinções estruturais entre as democracias e os regimes totalitários tem que ver exatamente com isto: enquanto nas primeiras os cidadãos têm direito à privacidade pessoal assim como têm o direito de fiscalizar os negócios do Estado, nos segundos o Estado é opaco, blindado ao olhar do público, e dispõe de instrumentos para bisbilhotar a intimidade de toda a gente. Daí ser tão grave que a imagem do Poder Judiciário apareça com frequência associada àqueles que são inimigos da transparência.
Essa associação nefasta se manifesta em pelo menos dois eixos do noticiário.
O primeiro é o da censura judicial. O Judiciário, ainda que por decisões minoritárias, vem aparecendo como um fator que impede a publicação de dezenas de reportagens cujos temas são, predominantemente, investigações jornalísticas sobre atos suspeitos da administração pública. Para quê? Para proteger políticos que não admitem prestar contas. Num tempo em que a censura foi extinta constitucionalmente, alguns juízes entram em cena como guardiães de uma reserva ecológica da censura, prejudicando grandes jornais e pequenos blogs, ferindo o direito à informação do público, beneficiando oligarquias que rechaçam qualquer fiscalização.
No segundo eixo, esse que explodiu nas manchetes há uma semana, temos as tentativas de esvaziar o poder de investigação de atos das próprias autoridades judiciárias. Isso transpareceu, há mais tempo, de modo mais discreto, na oposição à ideia de controle externo, representada pela criação do CNJ. Hoje, o mesmo traço se escancara na tentativa de esvaziar o poder desse órgão.
Aí está o fundamento da crise de imagem. O restante é consequência. O restante aparece como privilégios que dependem da opacidade. O noticiário grita: juízes querem ganhar acima do teto, juízes que praticaram crimes são "punidos" apenas com aposentadoria. Por tudo isso, a imagem do Judiciário está sub judice. E essa é a notícia mais triste de todas.
Eugênio Bucci, jornalista, é professor da Eca-USP e da ESPM - O Estado de S.Paulo

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O CNJ não pode parar

Fechados em si mesmos, os Poderes constituídos têm, no Brasil, um largo histórico de resistência à realidade. Por não se originarem de movimentos espontâneos ou de grandes lutas sociais, e porque não poucas vezes são impostas, e não construídas, as instituições nacionais têm uma tradição de imobilismo e hostilidade ao que atue fora de seus domínios.

Para combater essa tradição, de grave viés patrimonialista, é que entre nós foram concebidos os mecanismos republicanos de controle, estritamente necessários para garantir que o serviço público seja para o público, mas também, e sobretudo, para conferir legitimidade social aos órgãos de Estado e impedir e reprimir os desvios de conduta e a corrupção, que tantos danos trazem ao desenvolvimento do País.
Também com esse objetivo de conferir legitimidade e transparência ao Poder Judiciário, atendendo a uma exigência social irresistível, foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo que, desde a primeira hora, se firmou como instituição essencial a um novo modelo de Justiça no Brasil: um Poder que já agora deve ser aberto, voltado para as necessidades do público, e não mais apenas para o consumo interno dos operadores da lei; voltado para metas de gestão, produção, simplificação de procedimentos, e não mais para a burocracia do direito; voltados para prestigiar métodos alternativos de resolução de conflitos, tais como a mediação e a arbitragem, e não mais para a perpetuação dos litígios; voltado, finalmente, para conhecer as reclamações da sociedade contra os serviços da Justiça e os seus integrantes, com poderes inclusive para afastá-los, em caso de desvios funcionais.

Antes do advento do CNJ, por problemas conhecidos de corporativismo e de má estrutura das Corregedorias dos tribunais comuns, esses desvios funcionais, ainda que praticados por uns poucos, não recebiam nenhuma punição. Manchando o Judiciário, eles terminavam por se transformar em casos de folclore forense, de maldade humana ou de tragédia pública.

Com a instituição do Conselho e de sua Corregedoria Nacional, a realidade mudou sensivelmente: o combate à corrupção e ao crime organizado, que penetram as estruturas públicas até exauri-las por completo, e continuam a ameaçar as instituições e a Justiça, finalmente se transformou em prática.

Conduzido com energia pela Corregedoria Nacional de Justiça, esse autêntico serviço público está em risco, porém. Nas dobras das reações corporativas, que pretextam contrapor-se a declarações com que, entre tantos outros, a ministra Eliana Calmon se limitou a expressar um sentimento comum e verdadeiro - o sentimento de que o crime também se infiltra nas organizações mais respeitáveis -, está em curso um movimento cujo claro objetivo é transformar o CNJ, e especialmente a sua Corregedoria, em simples adornos institucionais. De fato, afastada que seja a sua missão de proteger a Justiça de desvios que, por motivos óbvios, os órgãos que o crime vitima não conseguem apurar nem mesmo denunciar, a Corregedoria Nacional servirá para quê? E a quem servirá?

Se é certo que os tribunais estaduais e regionais são autônomos e têm suas próprias Corregedorias, mais certo ainda é que a esses órgãos falta, muitas vezes, ambiente para que juízes apurem a conduta de seus pares. E falta até mesmo competência legal para investigar e sancionar os magistrados de segunda instância. Ao descontrole acresce, assim, uma sensação de impunidade, que serve somente para distanciar a Justiça da sociedade.

Para além dos argumentos próprios de um corporativismo arcaico, porém, a sociedade entende que o Poder Judiciário nacional é um só, que uma só deve ser a luta contra os desvios e as irregularidades funcionais e que isso apenas pode ser feito com eficiência e rapidez se, sem prejuízo da atuação das Corregedorias locais, a Corregedoria Nacional da Justiça - órgão externo aos tribunais - realmente funcionar.

A apreensão quanto aos destinos desse importante órgão de combate à corrupção não é somente da ministra Eliana Calmon. Ela é de toda a sociedade civil, que acompanhou atentamente os movimentos da última semana e dá mostras claras de que não abrirá mão de uma Corregedoria atuante e vocacionada a inibir, como apenas com sua presença já inibe, desvios que desmerecem a Justiça.

Prova disso não está apenas no clamor com que, em sucessivas manifestações e editoriais, a imprensa vem reivindicando a preservação do papel da Corregedoria Nacional. Tampouco está, apenas, na importante iniciativa do senador Demóstenes Torres de encaminhar proposta de emenda constitucional para explicitar que a Corregedoria é, e deve continuar a ser, protagonista no trabalho de preservar o Poder Judiciário contra condutas ruins. Está, também, no impressionante tecido de opiniões formado nas redes sociais da internet, nos corredores dos fóruns e dos tribunais, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e em tantas outras entidades, públicas e privadas, que confirmam que o CNJ não pode parar.

No curso de uma semana movimentada, em que o fluxo e o refluxo de declarações e negativas em concerto sobre o tema, a respeito da justa e espontânea reação social contra o esforço feito para esvaziar as funções do CNJ e de sua Corregedoria Nacional, falou-se em leviandades, em generalizações indevidas e graves, em pecadilhos de circunstância. Não é dessa forma, entretanto, que os que precisam da Justiça e nela operam mostraram compreender o presente e o futuro do Conselho. Pecados veniais e pecados mortais sempre existirão. No tratamento desse grave problema, que é de todos nós, todavia, o maior pecado será o silêncio.

Modesto Carvalhosa, advogado, autor de 'O Livro Negro da Corrupção', entre outras obras, foi presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP - O Estado de S.Paulo

domingo, 2 de outubro de 2011

INCERTEZAS, de Fernando Henrique Cardoso

Para quem já sofreu as consequências de várias crises financeiras internacionais, não chega a ser surpreendente o que ocorre nos países mais desenvolvidos da Europa, contagiados pela crise financeira que tem origem nos menos desenvolvidos da região.
No passado recente, Bancos Centrais e ministros de finanças dos primeiros procuravam mostrar que não havia como equiparar a situação de seu país com a tragédia que ocorrera noutro. As situações fiscais não seriam as mesmas, a proporção da dívida com relação ao PIB não era tão grande assim, num caso a dívida interna estava nas mãos de agentes financeiros internacionais e se denominavam em dólares, noutros, ao contrário, eram os poupadores nacionais que emprestavam aos governos locais em moeda do país, etc. Mas, quase sempre, havia uma variável crítica: o mutável estado de confiança dos agentes do mercado financeiro internacional. Quando se instalava a desconfiança quanto à solidez das contas fiscais e/ou externas de um determinado grupo de países de alguma maneira correlacionados, os argumentos sobre as diferenças perdiam força. E viravam pó, se surgisse o fantasma do default – da moratória, como se dizia.

O receituário do FMI tampouco era atento às diferenças. Exigia sempre mais do mesmo, às vezes não sem alguma razão: ajuste fiscal, reforma patrimonial do Estado etc. Mas fazia ouvidos moucos à demanda por maior regulação do mercado financeiro internacional. Era o que pedíamos à comunidade internacional os que dirigimos os países naquela época de aflições.
Reclamávamos maior regulação internacional para conter a especulação contra as moedas nacionais, ou seja: a criação de fundos de socorro maiores e de mais fácil acesso, o fortalecimento da base financeira do FMI e o aperfeiçoamento de suas práticas. Era preciso maior rapidez no atendimento dos países com crise de liquidez e menos “condicionalidades”, ou seja, as imposições restritivas à política econômica e fiscal dos países devedores, pois se o ajuste fiscal passasse de certo ponto impediria a retomada de crescimento econômico. Para financiar os novos fundos, alguns de nós relançamos a ideia de uma Taxa Tobin, apesar dos reclamos contínuos dos especialistas quanto aos efeitos desse tipo de imposto.
Alguns países emergentes tiveram melhores condições para negociar com o FMI, como foi o caso do Brasil, que havia realizado o Plano Real por sua conta e risco, sem o aval do Fundo. Com o Plano Real modificamos drasticamente as bases da política fiscal, saneando as finanças da União e as dos estados, impusemos regras severas ao sistema financeiro, seguindo as recomendações de Basileia para controlar a “alavancagem”, isto é, os empréstimos sem uma base adequada de capital próprio nos bancos. Ao mesmo tempo não descuidamos de, ao privatizar, ampliar a concorrência e manter ativos os instrumentos públicos de crédito no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e no Banco do Brasil, tornando-os aptos a reestruturar empresas nacionais ou localizadas no país. Ao lado disso, desde 1994 até hoje, os diferentes governos sustentaram um aumento constante do salário mínimo real e, a partir de 2000, foi possível criar uma rede de proteção social, da qual as Bolsas Família, iniciadas com nomes diferentes, se tornaram símbolo de inclusão social, diminuindo a pobreza e reduzindo um pouco as desigualdades.
Pela primeira vez, os países mais desenvolvidos sentem as consequências da falta de regulação do sistema financeiro. Olhando agora o que ocorre na economia global deparamo-nos com uma situação incerta. A regulação financeira proposta nas reuniões do G-20 encontra dificuldades para se efetivar dada a diversidade de interesses nacionais. Cada banco central opera como melhor lhe parece. O Fed inunda os Estados Unidos e o mundo com dólares e faz operações típicas de bancos comerciais sem se preocupar com a ortodoxia. Os responsáveis pelos desmandos financeiros não são punidos, recebem bônus (ao contrário do que ocorreu com o programa brasileiro de saneamento do sistema financeiro, que puniu os banqueiros) e o desemprego não cede porque não há consumo nem investimento. O Banco Central Europeu e o FMI exigem dos países em bancarrota virtual sacrifícios fiscais que impossibilitam a retomada do crescimento e, portanto, a volta à normalidade. As taxas de juros se mantêm próximas de zero, sem previsão de mudança, e as economias não reagem. Na Europa cada país faz a política fiscal que deseja, não há mecanismos de unificação. O desemprego e o mal-estar político minam esses países, e a ameaça de default é seu parceiro constante.
Desse quadro escapam as economias emergentes, China à frente de todas. Até quando? É óbvio que uma recessão prolongada ou uma grande contração, como diz Kenneth Rogoff, transmitirá às economias emergentes seus maus fluídos pelo conduto do comércio internacional. É preciso, antes que isso ocorra e o desastre seja maior, que haja um entendimento global. Este deveria partir do reconhecimento de que as dívidas de alguns dos países europeus são impagáveis. Com o nome de reestruturação ou outro qualquer, à la Brady, é preciso aliviar já a situação da Grécia, de Portugal e eventualmente da Espanha e da Itália. Suas dívidas internas e externas e a penúria de seus bancos cheios de títulos de qualidade desconhecida não lhes dão alternativas de retomada do crescimento sem uma redução substancial dos valores de seus passivos.
Não haverá condições político-morais para proceder a tais reestruturações sem, ao mesmo tempo, distribuir melhor o custo da “socialização das perdas”. O grito de Warren Buffet, seguido por milionários de outros países, mostra o descalabro do Tea Party ao querer impor mais ônus aos mais pobres, com responsabilidade zero na crise. Por fim ou o euro se derrete pela falta de unificação fiscal, ou esta se faz, ou a União Europeia se encolhe, autorizando alguns de seus membros a desvalorizar e usar outra vez uma moeda nacional.
Nada disso pode ser feito sem lideranças políticas fortes, dispostas a redistribuir o poder global e reorganizar suas bases decisórias. Terão força para tanto? Eis o enigma.