quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

COLUNA DO ARTHUR


MANAUS DA MINHA INFÂNCIA

Lisboa – A Manaus da minha infância era muito pequena. Acolhedora, segura, as pessoas ficavam de noite conversando nas calçadas, à bordo de suas cadeiras de balanço. Muito calor. Não havia ar condicionado. As famílias dormiam de janelas abertas.

Mas a cidade era mesmo pequena. Todo mundo se conhecia. As distâncias se equivaliam a distância nenhuma.

Aprendi a nadar, pelos braços fortes de meu pai, nas águas do Mindú. Águas puras, límpidas, que a especulação imobiliária, misturada com a falta de prefeitos de pulso, estragou. Os igarapés, tantos!, eram todos assim. As crianças se esbaldavam. A água gelada combinava bem com o sol abrasivo da minha terra.

"Matei" aulas para ir nadar nos Educandos, junto com meus colegas de então. Irritávamos os donos das pequenas embarcações, pegando carona nas "defensas". Lá vinham eles com cinturões, tentando atingir-nos nas mãos: "moleques endiabrados, vocês merecem apanhar muito!".

Minha tia Finoca era dona de um balneário, que chamávamos de "banho", ali para as bandas da Chapada. Ela e o tio Zé Jorge.

Minha mãe, meu pai e os quatro filhos morávamos na Eduardo Ribeiro, ao lado do Ideal Clube. Hoje, qualquer rapaz – ou moça – é capaz de ir correndo dali até a Chapada. Pois na minha infância, parecia uma travessia de oceano. Aos sábados, se nos tivéssemos comportado bem durante a semana e se nenhuma tivéssemos aprontado na aula de catecismo da Igreja de São Sebastião, conquistávamos a autorização para ir com tia Finoca para o "banho" dela, o Castrolândia. Íamos no sábado de manhã, após o catecismo, e retornávamos no domingo, antes de escurecer. Quando havia feriadão, melhor ainda. Nas férias, o máximo dos máximos.

No Castrolândia, nadávamos, jogávamos vôlei, comíamos um peixe enterrado em folha de bananeira que o sol cozinhava. Conversávamos fiado, ríamos muito.

A tia amava – e nós também – seus dois cachorros, a Ronda e o Piloto, ambos perdigueiros. Ronda, reservada e amiga. Piloto, espalhafatoso e amigo também.

Era um grande passeio da cidade ir aos "banhos" nos fins de semana. A cara daquela Manaus que levaram embora e nunca mais me devolveram. Nem a mim nem a ninguém que a ame de verdade.

Tia Finoca era um anjo de pessoa. Ingênua, cheia de boa fé. Acreditava em tudo e em todos. Um dia, apareceu no Castrolândia, convidado sei lá por quem, um jovem carioca que queria mesmo era vender títulos de um suposto clube, "em construção", na erma Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro daqueles tempos. Apesar de menino, chamei-a num canto e lhe disse: "tia, você não conhece esse cara. Tem toda a pinta de enganação". Ao que ela me respondeu: "mas meu filho, ele é do Rio, da capital da República". Tanto insisti que ela, um tanto contrariada, acabou não comprando o tal título.

Com o crescimento desordenado e vertiginoso da cidade, multiplicaram-se as mazelas. Favelas, miséria, criminalidade, prostituição, habitações infranormais. A cordialidade começou a ceder terreno para a selvageria. O êxodo do interior, na direção de Manaus, transferia pessoas que poderiam ser felizes em seus locais de origem e, muitas vezes, viam todo o seu mundo se desintegrar: perdiam a autoestima, seus filhos pegavam descaminhos, o olhar tristonho substituía a paz própria de quem conhece a mata, domina o rio, convive com os animais e pesca como ninguém. Perdiam a lua, o poente que lhes poetizava o cotidiano, a sensação de mistério que a floresta passa.

Fui para o Rio. Voltava a Manaus nas férias. Numa dessas viagens, tia Finoca, uma das pessoas que mais amei em minha vida, me segredou, do alto de sua pureza e ingenuidade: "meu filho, Manaus está virando uma metrópole. Já tem cada crime horrível". Para ela e para muitas pessoas de sua geração, crime também era sinal de progresso. E olhem que não estou pregando que o homem do interior "seja feliz" sem estudar, sem cuidados de saúde, sem possibilidades de abrir caminhos para os seus filhos. Nunca! Sou contra é jogá-lo na cidade grande sem nenhum cuidado e dele fazer mera estatística de boletins de ocorrência dos Distritos Policiais. Jamais preguei que Manaus não crescesse, pois isso equivaleria a pedir aos meus filhos e netos que permanecessem eternamente crianças, para meu puro, simples e egoísta deleite. Jamais! Sou contrário é ao crescimento desatinado, que amesquinha a vida das pessoas e dá até aos mais ricos a falsa sensação de que vivem bem.

Mas se tia Finoca tivesse razão, o progresso estaria estampado, então e também, na poluição dos igarapés. Águas pútridas como sinônimo de prosperidade. Que tal? Esgotos a céu aberto como exemplo de avanço econômico. Afinal, há quem enriqueça com isso, embora a grande maioria das pessoas permaneça pobre, muitas delas perto da miserabilidade, sem futuro, roubadas no seu passado e donas apenas de um presente amargo.

Metrópoles de crimes horrendos e igarapés mal cheirosos não servem de modelo para a Manaus que amo de paixão. Tenho saudades da cidade íntima, de "muro baixo", da minha infância. Não a quereria eternamente assim, todavia. Sonhava com o equilíbrio. Osaka resgatou suas águas. Logo, o sonho é realizável.

Crescer é preciso. Gerar infelicidade social não é preciso.

Pelo menos vou morrer acreditando que pode e deve ser assim.


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