segunda-feira, 21 de maio de 2012

" ... o terceiro elemento crítico do que se poderia chamar de "modelo político argentino" é a tentativa de controle da mídia. Da postura autoritária das autoridades que se recusam até mesmo a dialogar com alguns jornalistas com a frase de que "con vos yo no hablo" até a tentativa de esmagar certos jornais mediante o objetivo de vender a eles papel a preços proibitivos, passando pelas alusões ao "monopólio" doClarín - algo grotesco, em face da concorrência que existe entre diferentes jornais - e ao tom das acusações contra o Clarín e La Nación provinda de blogueiros oficiais crescentemente hostis, criou-se um clima de guerra que está tornando cada vez mais rarefeita a possibilidade de convivência. Nesse contexto, mais de um jornalista tem sido tratado por pessoas comuns com uma agressividade simplesmente desconhecida num país normal."


SEM "ARGENTINIZAÇÃO"

Há países que, comparativamente às nações desenvolvidas, se caracterizam por ter instituições frágeis. A vigência da "rule of Law" se manifesta no grau de maior ou menor discricionariedade em mãos das autoridades. Em países evoluídos, o cidadão e a empresa têm obrigações, mas têm direitos que são respeitados e, dadas regras do jogo claras, os indivíduos e as firmas têm condições de evoluir e progredir. Já nos países menos desenvolvidos, é o poder do príncipe (ou da princesa) que dá as cartas. No limite, vale a velha regra: L'État c'est moi (o Estado sou eu).
A Argentina virou um "case" de esgarçamento dos princípios que devem reger o funcionamento de uma República. O país se transformou num verdadeiro unicato, onde cada vez mais tudo depende dos desígnios de uma soberana.
A democracia corre perigo nessas circunstâncias, não porque as decisões não espelhem a vontade da maioria - não há a menor dúvida de que Cristina Kirchner conta com apoio majoritário da população -, mas porque há princípios de convivência entre forças diferentes que foram sendo sucessivamente deixados de lado.
Três pontos chamam a atenção na realidade política do país vizinho. Primeiro, o fato de a inflação oficial ter virado uma ficção, que vem sendo passivamente aceita como parte do funcionamento normal de um país. Trata-se de uma aberração. Embora sejam questões de graus de gravidade obviamente diferentes, a mesma sociedade que no tempo dos militares passava pela Escuela de Mecánica de la Armada - a terrível e temida Esma, de triste memória, convertida em centro de desaparecimento de pessoas - hoje convive, como se fosse natural, com uma inflação oficial que há vários anos subestima flagrantemente a realidade. É uma espécie de "realidade paralela" na qual se finge acreditar - mesmo que todos saibam que é falsa, numa espécie de loucura coletiva que demonstraria a vigência da velha piada de que "donde acaba la razón, empieza la Argentina".
O segundo ponto-chave da situação Argentina é a demonização da crítica. Ao longo dos anos e do governo dos dois membros do casal reinante - Nestor e Cristina -, o "demônio" assumiu diversas caras, não necessariamente partidárias. Ora foi a Igreja; ora o campo; algumas vezes, uma figura específica; em épocas eleitorais, os partidos adversários do governo; e, mais recentemente, a Espanha. O fato é que no país se vive permanentemente um clima de rivalidade e tensão que cria o ambiente no qual germina todo tipo de tentação autoritária.
Nesse contexto, um grupo de "piqueteros" um dia queima um posto de gasolina que desrespeitara o congelamento de preços na época imposto pelo governo; um secretário com "status" político de ministro é visto na rua batendo fisicamente em manifestantes de um partido de oposição; ou o ministro de Economia se sente à vontade para comparar personagens críticos das ações governamentais aos nazistas, como forma de embasar atitudes que visam simplesmente à proscrição de quem diverge do pensamento oficial.
Finalmente, o terceiro elemento crítico do que se poderia chamar de "modelo político argentino" é a tentativa de controle da mídia. Da postura autoritária das autoridades que se recusam até mesmo a dialogar com alguns jornalistas com a frase de que "con vos yo no hablo" até a tentativa de esmagar certos jornais mediante o objetivo de vender a eles papel a preços proibitivos, passando pelas alusões ao "monopólio" doClarín - algo grotesco, em face da concorrência que existe entre diferentes jornais - e ao tom das acusações contra o Clarín e La Nación provinda de blogueiros oficiais crescentemente hostis, criou-se um clima de guerra que está tornando cada vez mais rarefeita a possibilidade de convivência. Nesse contexto, mais de um jornalista tem sido tratado por pessoas comuns com uma agressividade simplesmente desconhecida num país normal.
O Brasil precisa estar atento ao que ocorre na Argentina, porque aqui há grupos "heavy metal" no País que gostariam de poder implantar aqui as mesmas práticas.
A presidente Dilma Rousseff, em atitude que honra o seu governo, tem repelido qualquer tentativa de avançar por caminhos similares aos dos vizinhos e tornou-se fiadora das boas regras de convivência. Entretanto, a combinação de simpatia notória de alguns grupos pelo modelo argentino; dificuldades de aceitação da crítica por parte desses grupos; e tentativas explícitas de controle da mídia que recorrentemente aparecem no noticiário indicam que o risco de "argentinização" do processo político brasileiro não é nulo.
Daí por que é necessário manter a vigilância para evitar que certas regras sejam quebradas. A postura republicana da presidente Dilma na sua relação com a oposição e a bela faxina que o sempre correto ministro Paulo Bernardo fez ao deixar de lado ideias autoritárias emanadas de setores anteriormente próximos à sua pasta merecem elogios.
É necessário que tal atitude seja preservada, para que o Brasil continue a se diferenciar de alguns dos seus vizinhos barulhentos.

ESTADO DE SÃO PAULO / OPINIÃO / FÁBIO GIAMBIAGI / "SEM ARGENTINIZAÇÃO".

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