MAIS SEGURANÇA PESSOAL, MENOS DESIGUALDADE
Em 12 de janeiro o chefe da nossa
sucursal em São Paulo entrevistou Fernando Henrique Cardoso, presidente do
Brasil de 1995-2002, no Instituto FHC. Eles discutiram os desafios do Brasil e
seu poderio global crescente. Você pode clicar abaixo para ouvir a conversa, ou
ler a transcrição completa a seguir.
The Economist: Podemos começar
pela maneira como a posição do Brasil no mundo está mudando? O Brasil parece
estar tentando criar um novo tipo de poder mundial – um “soft power”.
Cardoso: No século passado a
economia do Brasil cresceu muito consistentemente até 1980. Só o Japão cresceu
mais depressa em termos per-capita. Daí em diante o Brasil tem sempre procurado
novos papéis. Na cabeça do povo brasileiro, somos um gigante. Mas nosso
tamanho, por muito tempo ele foi uma ilusão. Nós ainda não temos capacidade de
desempenhar um papel importante. Ficamos o tempo todo imaginando o que
poderíamos vir a ser.
O Brasil aspirava ser parte do
grupo central da Liga das Nações; depois da Segunda Guerra Mundial o Brasil
levantou essa possibilidade de novo [durante a criação das Nações Unidas]. Churchill
vetou, dizendo que as Américas não poderiam falar com duas vozes. Churchill
errou. Assim, nós sempre aspiramos um papel importante.
No século XIX, por causa do
confronto entre Espanha e Portugal, nós nos envolvemos em guerras no Sul, e o
império brasileiro foi percebido por nossos vizinhos como uma ameaça. Depois o
eixo deslocou-se para os Estdos Unidos e o Brasil virou uma República e muito
mais acomodado – e novamente hesitou. Até que ponto deveríamos desempenhar um
papel hegemônico na região? Nunca assumimos esse papel. Preferimos ser amados a
ser temidos.
No fim do século passado, a
economia recuperou o vigor, estabelecemos tradições democráticas e
redescobrimos nossas peculiaridades culturais. Isso nos deu uma sensação de que
talvez pudéssemos desempenhar um papel na área da “soft politics”: não apenas
por sermos economicamente fortes, mas também por causa da nossa capacidade de
aceitar os outros, de sermos tolerantes. Nós gostamos de nos considerar sem
preconceitos, como uma democracia racial. Não é inteiramente verdade, mas é uma
aspiração com alguns ingredientes de realidade. Porque de fato nós somos mais
tolerantes do que vários outros países.
Compare os Estados Unidos e o
Brasil. Ambos são países construídos com base na imigração, nas no Brasil os
imigrantes se integraram mais, e o que é mais impressionante é que as culturas
se fundiram. Não temos uma cultura negra no Brasil, e uma cultura branca. Não
tem sentido no Brasil falar de cultura negra: ela é a nossa cultura.
E nós aceitamos a variedade
religiosa. Não somos intolerantes – os brasileiros são sincretistas, não
fundamentalistas. E porque somos um país de imigrantes, temos contato com
diferentes partes do mundo. Muitos brasileiros são japoneses e talvez mais de
10 milhões são árabes. Mais que isso são alemães. Não há outro país no mundo
com mais italianos, em números absolutos. E tudo isso se fundiu. Nós nunca
sabemos exatamente qual é nossa ascendência.
O Brasil sempre foi a favor do
multilateralismo, em vez de relações bilaterais, e de tentar negociar, lançar
pontes. A diplomacia brasileira se baseia nisso. Nós precisamos olhar para o
Sul, para a bacia do Rio da Prata, e para os Estados Unidos; relacionarmo-nos
tanto com os Estados Unidos quanto com o Sul.
Há elementos de flexibilidade na
cultura brasileira que têm origem em Portugal, não só no Brasil. Se você
comparar os portugueses e os holandeses na África, é bem diferente. Os
portugueses sempre tiveram relações sexuais com os nativos. Há uma frase que eu
gosto de repetir quando estou na Espanha. No século XVIII, o Marques de Pombal
[Sebastião José de Carvalho e Melo, o primeiro ministro do Reino de 1750 a
1777] escreveu uma carta para seu irmão, o vice-rei do Norte do Brasil,
dizendo: temos que estimular os portugueses a se casar com mulheres indígenas,
porque é melhor ter meio português do que um espanhol! Eles estavam enfrentando
os espanhóis e se preocupavam com a questão demográfica. Sentiam que essas
crianças eram, de algum modo, portuguesas. Isso não é comum no mundo hispânico,
eles se mantinham mais separados.
Então, no Brasil, a classe
dominante em geral tentava disfarçar o fato de que a desigualdade era tão
grande. Uma das maneiras de disfarçar as diferenças é tratar as pessoas como se
elas fossem mais próximas do que realmente são, falar como se fôssemos iguais.
Até certo ponto, isso é um engodo, mesmo que as pessoas não se dêem conta; é
uma maneira de manter as diferenças sem provocar uma reação forte. A parte
tradicional da classe dominante no Brasil será sempre amena, gentil, pedindo
sempre “por favor”, em vez de mandar. Com a nova burguesia não é assim: eles
são muito mais arrogantes do que os grupos da elite tradicional do Brasil. São
diferentes – mais capitalistas.
The Economist: Vamos falar
das mudanças sociais. O Brasil mudou muito nos últimos anos.
Cardoso: O divisor de águas foi a
nova Constituição. O começo foi a luta contra o regime militar e as greves. A
nova Constituição foi o batismo de uma nova sociedade.
The Economist: Ainda está
mudando. Esta República é jovem; a Constituição foi escrita apenas em 1988.
Vocês ainda estão ajustando suas instituições. Você participou do processo de
construção de instituições, possivelmente o mais importante agente desse
processo.
Cardoso: O sentido institucional
sempre foi muito presente no Brasil, em comparação com outras partes do Novo
Mundo. A monarquia portuguesa era estável, e somos herdeiros da coroa
portuguesa. Todas as instituições chegaram aqui com o rei de Portugal e o Rio
[de Janeiro] tornou-se a capital do Império português. Ao mesmo tempo, esta é
uma sociedade altamente desorganizada! É difícil combinar estes fatos: que
temos instituições e ao mesmo tempo estamos sempre dispostos a desobedecê-las.
É a flexibilidade – o “jeitinho”. Isso é bom e ruim. Em certos aspectos nossa legislação
é ótima mas a prática é um desastre. Por exemplo, temos regras muito estritas
sobre a conduta dos funcionários públicos e políticos, e sobre o dinheiro
público. E apesar disso a corrupção está aí.
The Economist: A corrupção
está aumentando?
Cardoso: Sempre tivemos algum
grau de corrupção, aqui e ali, mas o sistema não era corrupto. Agora o sistema
permite a corrupção como um ingrediente normal. Todos sabem que quando você
organiza um governo você tem que partilhar poder com os partidos. Mas você não
está partilhando poder, você está partilhando oportunidades de ter bons
contratos.
The Economist: Não foi esse
o caso para você?
Cardoso: Não, não, não. Talvez
num ou outro caso, mas agora o sistema inteiro está baseado nisso. Isto é novo.
É uma evolução muito ruim. Na cultura política, a flexibilidade tornou-se, não
flexibilidade, mas tolerância com o crime. Você tem instituições, tem
tribunais, mas ninguém está na cadeia.
The Economist: Você vê algum
sinal de movimento por mudanças na sociedade?
Cardoso: Alguns indivíduos têm
muita raiva. O ponto é que, nos últimos 15 anos, a sensação de bem-estar tem
sido tão óbvia, e melhora a cada ano. A população talvez saiba que há alguma
coisa errada, mas fica nisso. Não agem contra, não protestam. Algumas pessoas,
sim, a “velha” classe média.
The Economist: Agora o
Brasil tem duas classes médias.
Cardoso: A nova classe média
talvez venha a protestar no futuro, porque ela não e um produto da corrupção,
mas dos mercados. Ela está ascendendo na escala social pelo trabalho, por seu
próprio esforço. Então eu espero que com o tempo ela reaja. Mas isso vai
depender da situação geral. Porque hoje ninguém se importa. As pessoas são
contra a corrupção, aqui e ali, mas não se mobilizam, porque a situação esta
ok, elas estão ascendendo.
The Economist: Essas pessoas
são eleitores naturais do PSDB? Pessoas que estão trabalhando duro e querem
manter o que é seu, em outros países votam em partidos que economicamente são
de centro-direita. (Nota: o PSDB, ou Partido da Social Democracia Brasileira,
foi fundado por Cardoso e outros no bojo do movimento de oposição à ditadura
militar, em 1988. O PT, ou Partido dos Trabalhadores, ao qual pertencem a atual
presidente, Dilma Rousseff, e o presidente anterior, Luiz Inácio Lula da Silva,
foi fundado mais ou menos na mesma época.)
Cardoso: Mas não há sentido de
esquerda e direita no Brasil. É estranho. Não temos uma direita no Brasil. O
PSDB começou de centro-esquerda e agora na prática é de centro. Mas o que isso
significa?
Qual a diferença entre o PSDB e o
PT? No começo era muito claro. O PT tinha muito mais ligação com os sindicatos,
era muito mais próximo a setores da igreja e tinha uma vaga ideia de socialismo
– não socialismo tradicional, não comunismo, mas socialismo no sentido de que
não apostavam no estado para mudar a sociedade, mas, ao contrário, que a
sociedade civil mudaria o estado. O PSDB sempre foi mais próximo da classe
média do que dos sindicatos e nunca teve uma aspiração socialista tão nítida.
Era mais social-democrático que socialista, mas, de novo, apoiava a ideia de
que o importante não era expandir apenas o estado, mas criar sociedade civil.
Agora creio que o PT descartou a
sociedade civil. Eles acreditam no partido e no estado.
The Economist: Qual o papel
da oposição num país onde o governo é tão grande? Dentro do governo está todo
mundo, dos comunistas à direita, passando pelos latifundiários. Não há
ideologia.
Cardoso: Isto é uma certa
confusão, mais acentuada sob Lula, porque Lula virou o pai dos pobres – e dos
ricos também. Em nome da governabilidade. Lula nunca teve um sentido de luta de
classes, apesar de ser um líder sindical. Para ele o importante é negociar.
Negociação, mais o enorme ímpeto vindo dos mercados, significou que não há mais
diferença entre direita e esquerda.
Sob o regime autoritário tivemos
uma direita mais nítida porque havia uma esquerda mais nítida, por causa da
Guerra Fria. Com o fim da Guerra Fria e o enorme progresso econômico do Brasil,
os grupos mais direitistas no Brasil não são mais direitistas, são
conservadores. Em certo sentido, são clientelistas: gostam de estar junto do
governo. Se você observar a composição do Congresso, vai ver as mesmas pessoas
apoiando [José] Sarney, [Fernando] Collor, [Itamar] Franco, eu mesmo, depois
Lula [Luis Inácio Lula da Silva] e agra Dilma [Rousseff]. Não quero pegar um
nome específico, mas, só para dar um exemplo, um amigo meu, ministro de Minas e
Energia, foi parte disso tudo. Sarney é a mesma coisa: ele foi chefe do grupo
do Congresso que apoiou o regime militar e está no governo até hoje.
The Economist: O que faz a
oposição não sistema como esse?
Cardoso: Hoje a oposição está
numa espécie de armadilha. Nossos partidos tornaram-se cada vez mais partidos
congressuais. A oposição é muito ativa no Congresso, faz discursos, protesta,
quer organizar uma CPI, uma audiência. E para o povo isso não é nada. A
sociedade simplesmente não liga para o Congresso. Os partidos não têm contato
com a sociedade. O PSDB tem sido forte em São Paulo há muito tempo, sim, mas a
população presta atenção no Executivo, não no Legislativo. Na cabeça dos
brasileiros não há contradição entre votar em Lula para presidente e no PSDB
para governador do estado.
Contudo, você pode encontrar
elementos de racionalidade. Se for ver onde o PSDB é mais forte do que o PT, a
tendência é clara: é nas partes do Brasil que são mais desenvolvidas
economicamente, mas orientadas para o mercado, ou seja, no meio da “nova classe
média”. Não era assim, porque o PT era muito forte nas classes populares urbanas
em São Paulo. Mas o PT foi perdendo terreno em São Paulo e se fortalecendo no
Nordeste do Brasil, onde em alguma medida substituiu os velhos partidos
clientelistas, porque agora é o PT a chave para o dinheiro público.
Isto não é absoluto: há
governadores do PT no Sul e governadores do PSDB no Nordeste. Mas se olhar no
nível das prefeituras o PSDB está principalmente nas partes economicamente mais
progressistas do Brasil: áreas onde o mercado é mais forte e as pessoas são
menos dependentes do governo.
Se o PT está no governo, ele
consegue todos os aliados em Brasília [onde está baseado o Congresso
brasileiro]. Por isso é tão difícil entender isso numa perspectiva europeia. Em
alguma medida, mas não exatamente, nossos partidos são mais parecidos com os
americanos – uma espécie de máquina de produzir votos. Mas nós com certeza não
temos o espectro ideológico que você tem na Europa.
The Economist: Na Europa os
partidos de esquerda conseguiram achar um novo papel para si mesmo desde o fim
da Guerra Fria: algo como justiça, ou equidade, ou aparar as arestas do
mercado. Suponho que hoje no Brasil não existe a sensação de que o mercado tem
arestas tão duras!
Cardoso: Se eu penso numa
oposição mais forte no Brasil, ela provavelmente se baseará em ideias não
econômicas: justiça, segurança pessoal; republicanismo em contraposição à
corrupção; respeito pela lei; qualidade de vida.
Se você olha a vida cotidiana, o
que está ganhando espaço no Brasil é o mercado. O governo é muito forte e
importante, mas o espírito do mercado também está permeando o governo. Veja,
por exemplo, a Petrobras ou o Banco do Brasil: eles atuam como empresas
privadas.
É importante enfatizar que o
espírito de empresa também está ganhando espaço no Brasil. Veja o sistema
bancário. Ele se baseava em emprestar dinheiro para o governo a juros muito
altos. Mas agora estamos chegando num ponto em que não dá para sustentar esses
juros altos, de modo que os bancos terão de se adaptar. O acesso a banco era
muito restrito no Brasil; agora está se expandindo. A ideia de crédito é muito
nova porque com a inflação isso era impossível.
Em comparação com alguns outros
países latino-americanos o sistema bancário no Brasil tem certas vantagens.
Temos um sistema financeiro misto, 50% estatal, 25% controlado por famílias brasileiras
e 25% por bancos internacionais. Então e altamente diversificado. Segundo, a
dívida interna está nas mãos de brasileiros. Sempre tivemos um sistema
financeiro enraizado na sociedade brasileira.
Seria impossível fazer aqui o que
foi feito na Argentina. O dólar nunca foi nossa moeda, ao contrário da
Argentina. Ao longo de todo o período inflacionário nossa poupança se manteve
em moeda local, porque tínhamos um sistema de indexação para ajustá-la. Nunca
tivemos “currency board”. Eu mesmo tive uma tremenda discussão com o FMI na
crise de 1999 [quando o custo do financiamento da dívida pública brasileira deu
um pulo e o país acabou desvalorizando sua moeda]. [Stanley] Fischer, que hoje
é presidente do Banco Central de Israel, disse: Vocês têm que fazer o que a
Argentina fez. Nós resistimos. Nunca aceitamos amarrar nossa moeda ao dólar,
porque sabíamos da importância de podermos desvalorizar nossa moeda, por causa
das nossas exportações. Na Argentina, mesmo hoje, estão mandando dinheiro para
o exterior. Não temos esse problema: temos um sistema financeiro muito forte e
a poupança está em moeda nacional.
The Economist: Agora está
entrando dinheiro e há o problema oposto: o real está incrivelmente forte.
Cardoso: É um problemão. Agora
não temos alternativa a não ser aumentar a produtividade. Mas o problema com a
produtividade agora não está dentro das empresas, está fora. É o governo; são
as estradas; é a tributação. O que tem que ser feito é uma longa história, mas
o governo precisa racionalizar fazer, algumas reformas. Algumas são muito
difíceis de realizar – como a reforma tributária – mas são necessárias. Veja a
carga tributária: subiu a mais de 36% do PIB. Nosso PIB hoje é mais de US$2
trilhões. Trinta e seis por cento de US$2 trilhões e muito dinheiro. Mas o
governo está expandindo a burocracia; super-expandindo sem levar em conta a
necessidade de renovar a infraestrutura e se concentrar na educação. A
população vai reagir contra ainda mais aumento de impostos. Isto tem que forçar
o governo a ser muito mais racional no uso desse dinheiro.
The Economist: Você vê algum
sinal disso acontecer?
Cardoso: Não sei… Talvez por causa
da presidente Dilma Rousseff. Ela é muito mais aberta para entender os números.
The Economist: Você tem uma
relação muito interessante com a presidente. Vocês dois parecem ter criado um
novo relacionamento entre ex-presidente e presidente.
Cardoso: Porque Lula perdeu a
oportunidade de fazer isso. Eu tinha uma relação pessoal antiga com Lula. Fomos
muito próximos. Ele passou férias na minha casa de praia com sua família. Mas
não tivemos relação institucional, porque essa foi a decisão do PT. Mas isso foi
por causa da política eleitoral. Dilma é diferente. Ela não tem ligação pessoal
comigo, é um relacionamento muito mais superficial do que foi com Lula. Talvez
ela ainda não se veja – pelo menos até agora – como candidata, de modo que ela
não encara outras pessoas como inimigas. Não sei, mas ela tem sido sempre muito
correta comigo.
Por coincidência, tive um sonho
na noite passada, em que nós – Lula e eu – propúnhamos juntos um consenso
nacional. [risos] É tão óbvio que o Brasil precisa se concentrar em algumas
coisas fundamentais. Que fazer com a energia? Que fazer com a educação? Como
criar melhores oportunidades para nossa infraestrutura, com o governo e o setor
privado trabalhando juntos? Como chegar a um consenso sobre o meio ambiente? É
tão óbvio. Essas não são questões partidárias, mas nacionais.
The Economist: Consenso
nacional tende a acontecer em tempos de crise…
Cardoso: É por isso que não
acontece. Por outro lado, há uma espécie de acordo não explícito. Quando Lula
assumiu a presidência o mundo acreditou que ele destruiria tudo o que eu tinha
feito. E ele não destruiu – sem ser explícito. Quando eu vivi no Chile [durante
o período da ditadura militar no Brasil] os democratas cristãos e socialistas
eram adversários, os socialistas muito mais à esquerda e os democratas cristãos
muito mais conservadores. Depois eles convergiram para criar uma força unida, a
Concertación. Nós não fizemos assim. Mas na prática estamos fazendo a mesma
coisa, em alguma medida. O discurso eleitoral é diferente, claro, porque você
tem que sinalizar que é diferente. Mas na prática não é – o que dificulta a
oposição.
The Economist: Sobre o tema
da oposição, vou dizer francamente que achei a campanha do PSDB para presidente
em 2010 muito fraca. O partido vai ser mais combativo em 2014 e apresentar um
candidato em torno do qual possa se unir? Ele tem uma estratégia clara? Ou vai
apenas brigar internamente e rachar?
Cardoso: Na última campanha o
PSDB teve equívocos enormes. No começo o favorito era nosso candidato (José
Serra), disparado. E em vez de organizar alianças – porque é mais fácil criar
alianças quando se está por cima, porque os partidos querem estar junto com o
vencedor, como eu disse antes – nós não fizemos isso. Nosso candidato ficou
isolado, até internamente.
The Economist: Ficou isolado
ou isolou-se? Ele afastou os outros?
Cardoso: Sim. E isso foi muito
ruim. E apesar disso, Dilma foi para o segundo turno. E Serra teve 44%.
The Economist: Só 44% contra
alguém que nunca tinha sido cogitada para presidente antes…
Cardoso: Com Lula por trás. Seja
como for, o que estou tentando dizer é que seria possível ganhar. Foi falha
nossa.
The Economist: Com o mesmo
candidato?
Cardoso: Bem… talvez não.
The Economist: Como o PSDB
vai se unir ao redor de um candidato?
Cardoso: Tem que buscar a unidade
interna. Eu diria que agora o PSDB está mais consciente da necessidade de se
unir. Não é simples, porque o senso de coesão baseada em valores é menos forte
que no passado. É mais uma questão de personalidades agora. E o mesmo se aplica
ao outro lado. A última campanha deles foi nada, zero; as questões reais nunca
foram levantadas. Foi um simulacro de campanha, com marqueteiros desempenhando
o papel de atores principais, em vez de serem submetidos a alguma liderança.
Agora há vários pontos de
interrogação. Qual será o papel de Lula? Eu diria que ninguém sabe, nem ele
mesmo. Por causa da sua saúde [Lula tem câncer na garganta, com um bom
prognóstico], mas não só por isso. Diria que normalmente Lula tentaria
concorrer: e é um animal muito competitivo, um animal político. E provavelmente
a presidente Dilma não tem respaldo interno [em seu partido e nos parceiros de
coalizão]. Se ele também tiver a mesma aspiração – não tenho certeza – será
difícil para ela. Uma coisa é concorrer com Lula, outra é concorrer com outra
pessoa, mesmo a presidente Dilma.
No caso do PSDB, o ex-governador
Serra desempenha o papel de Lula: ele tem fibra, gosta de competir. Não sei até
que ponto ele estará mais convencido que não é a vez dele, para dar espaço a
outros.
The Economist: Aécio pode
ganhar?
Cardoso: Aécio é de uma cultura
política brasileira mais tradicional, mais capaz de estabelecer alianças. Ele
tem apoio em Minas Gerais [seu estado]. São Paulo não é assim, sempre se
divide, é muito grande. As coisas vão ficar mais claras depois das eleições
municipais [em outubro de 2012]. Provavelmente vamos ver uma forte luta interna
no PSDB, entre Serra e Aécio.
The Economist: Geraldo
Alckmin [atual governador de São Paulo e candidato presidencial do PSDB em
2006] também está no jogo?
Cardoso: Não, eu acho que não.
Tenho alguma responsabilidade no
caso do PSDB. Para botar as cartas na mesa, meu sucessor natural morreu, um
ex-governador de São Paulo, Mario Covas. Eu fui presidente por oito anos, fiz
parte do governo antes disso, e estava com 71 anos. Já chegava. Decidi que era
hora de abrir espaço para outros, não só por generosidade, mas também porque
estava cansado de exercer a liderança política. E Covas morreu. Assim, nenhum
líder inconteste me substituiu. Foi uma tensão permanente entre três ou quatro
possíveis candidatos, e no fim Serra saiu candidato, mas sem convencer os
outros que ele era realmente o homem. E agora de novo não está claro. No caso
do PT foi diferente porque Lula nunca se afastou da luta, e impôs Dilma. Vamos
precisar de algum tempo para reorganizar a hierarquia da liderança. E é muito
tarde para mim – estou com 80 anos – para aspirar isso.
The Economist: Você ainda é
uma das vozes mais importantes dentro do seu partido.
Cardoso: Certo, mas não por minha
causa, e sim por falta de outros! Acho que isso é ruim para o Brasil. E o mesmo
se aplica ao outro lado: é só Lula. Deixe-me dizer de modo impessoal: nos
últimos 20 anos, só dois líderes. Não é saudável para um país, um país grande.
Eu tomei minha decisão: abrir espaço. Esse espaço ainda está aberto.
Temos algumas pessoas de uma nova
geração. Depois da minha geração há Serra e o ex-governador do Ceará, Tasso
Jereissati. Depois vem Aécio; o governador do Pará, Simão Jatene; o governador
de Goiás, Marconi Perillo. Olhando objetivamente, há outo governador, do
Partido Socialista, Eduardo Campos, de Pernambuco, que poderia virar líder –
ele tem algumas das características. Ele poderia ser capaz, mas ainda não. É
uma possibilidade.
Então, há possibilidade. É uma
questão de tempo. Provavelmente se Lula não se envolver – o mesmo vale para mim
– seria melhor. Para deixar acontecer naturalmente.
The Economist: Desde que
deixou a Presidência, você tem falado publicamente de vários assuntos
delicados, notadamente a futilidade da guerra às drogas e a necessidade de
tratar o abuso de drogas como um assunto de saúde pública, não criminal.
Cardoso: No meu livro mais
recente, “A soma e o resto”, falo francamente sobre vários assuntos, sem levar
em conta que sou um ex-professor de sociologia e ex-presidente. Falo como uma
pessoa. É difícil, mas em todo caso eu tentei. Incluí o que eu penso sobre
drogas. É hora daqueles que realizaram alguma coisa tomar a palavra, porque o
que está minando o prestígio dos políticos na sociedade é que os políticos
preferem não assumir posições. Porque causa problemas. Porque às vezes o custo
de ser franco é muito alto.
No livro eu falo de coisas menos
comuns, como a minha espiritualidade, por exemplo, porque nos bastidores as
pessoas sempre discutiram até que ponto eu sou ou não uma pessoa de fé. Também
sobre o que penso da abordagem tradicional da vida política: o sistema
partidário. Ele está completamente ultrapassado com você tem novas formas de
conexão, como a internet. Na minha cabeça não está claro o que pode ser feito
pelas mídias sociais, internet, smartphones e assim por diante. Que eles podem
mobilizar as pessoas está bem claro, estão fazendo isso. Mas, assim sendo, como
se conectar com as instituições políticas? Creio que este é um ponto de
interrogação para o mundo todo.
Entrevista de Fernando Henrique Cardoso, Ex- Presidente do Brasil, à revista The Economist On Line / dia 19/01/2012 / Tradução: Eduardo Graeff