DISCURSO DE POSSE DO MINISTRO
CARLOS AYRES BRITTO, NA PRESIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
“Eu disse à minha alma,
fica tranquila e espera.
Até que as trevas sejam luz,
e a quietude seja dança”
- T. S. Eliot
Até que as trevas sejam luz,
e a quietude seja dança”
- T. S. Eliot
"Quem já se colocou à testa de
qualquer dos Poderes do Estado brasileiro certamente fez o que fiz ainda há
pouco: prestar o solene compromisso de atuar sempre nos marcos da Constituição
e das leis, assim, nessa ordem mesma. Com um registro especial para o ato de
posse da presidente Dilma Rousseff, que, sob a mais respeitosa audição e o
mais atento olhar da própria História, se tornou a primeira mulher a
titularizar o cargo de presidente da República Federativa do Brasil. Ungida que
foi, sua excelência, na pia batismal do voto popular.
Perguntarão os que me ouvem e
veem: por que o compromisso de tais agentes do Poder é o de atuar nos marcos da
Constituição e das leis, nessa imperiosa sequência? Resposta: porque na
primacial observância da Constituição e na complementar obediência às leis do
Brasil é que reside a garantia de um desempenho à altura da relevância dos
respectivos cargos. É como dizer: basta cumprir fielmente a Constituição e as
leis, com as respectivas prioridades temáticas, para se ter a antecipada
certeza do êxito de tão honrosas, elementares e complexas investiduras.
É o que sente e pensa o próprio
homem comum do povo, segundo pessoalmente comprovei com a vivência deste
recente episódio que peço licença para contar: retornava eu de um almoço
domingueiro, aqui em Brasília, na companhia da minha mulher e de um dos meus
filhos, quando encontrei ao lado do nosso automóvel um homem que aparentava de
30 a 35 anos de idade. Apresentou-se como guardador de carros, mas eu já o
conhecia, meio a distância, como morador de rua. Já o vi mais de uma vez, com
uma rede estendida sob as árvores, a embalar o abandono dele.
E assim me dirigiu a palavra:
“ministro Ayres Britto, como o senhor vê, estou aqui tomando conta do seu
veículo para que ninguém danifique o patrimônio da sua família”. Eu agradeci
àquele homem que me conhecia até pelo nome e procurei nos bolsos algum trocado
para recompensá-lo. Em vão. Nenhum dos três membros da família Britto portava
dinheiro, nem graúdo nem miúdo. Disse então ao meu educado interlocutor: “como
o senhor percebe, desta feita vou ficar lhe devendo”.
Ele me fitou diretamente,
profundamente, nos olhos e, altivo, respondeu: “ministro, o senhor não me deve
nada. O senhor não me deve nada, ministro; basta cumprir a Constituição”.
Fecho o parêntese e faço nova
pergunta: e por que tudo começa com o dever do fiel cumprimento da
Constituição? Resposta igualmente fácil. É que esse documento de nome
Constituição é fundante de toda a nossa Ordem Jurídica. Diploma inaugural do
nosso Direito Positivo, portanto, e o supremo em hierarquia normativa.
Constitucionalista, eminente
Michel Temer, dá lições primorosas quanto ao conceito de Constituição e Poder Constituinte. A Constituição é primeira e mais importante
voz do Direito aos ouvidos do povo. Donde o seu caráter estruturante do Estado
e da própria sociedade, a um só tempo. Certidão de nascimento e carteira de
identidade do Estado, projeto de vida global da sociedade.
Daqui já se vislumbra o que mais
importa: esse diploma jurídico de nome Constituição provém diretamente da nação
brasileira, única instância de poder que é anterior, exterior e superior ao
próprio Estado. Por isso que, pela sua filha unigênita que é a Constituição
mesma, a nação governa permanentemente quem governa transitoriamente. E o faz,
aqui nesta Terra Brasilis, pelo modo mais intrinsecamente meritório; pelo modo
mais cristalinamente legítimo, pois o fato é que a menina dos olhos da nossa
Constituição é a democracia. Democracia que nos confere o status de país
juridicamente civilizado. Primeiro-mundista, pois os focos estruturais de
fragilidade do País não estão em nosso arcabouço normativo, mas no abismo que
se rasga entre a excelência da Constituição de 1988 e sua concreta incidência
sobre a nossa realidade sócio-econômica e política.
Democracia, enfim, que se enlaça
tão intimamente à liberdade de imprensa que romper esse cordão umbilical é
matar as duas: a imprensa e a democracia.
Com efeito, o mais refinado toque
de sapiência política da nossa última Assembleia Nacional Constituinte foi
erigir a democracia como sua principal ideia-força. O pinacular princípio de
organização do Estado e da sociedade civil, sabido que, de todas as fórmulas de
estruturação estatalsocietária, somente a democracia é que se funda na
soberania popular.
Democracia que toma o nome de
Federação, quando vista sob o ângulo da divisão espacial do poder político; o
nome de República, já sob o prisma da tripartição independente e harmônica dos
Poderes estatais. Daí esses dois anéis de Saturno que são a indissolubilidade
de laços e a autonomia política, em se tratando do condomínio federativo. Daí
os princípios da eletividade dos governantes, da temporariedade dos respectivos
mandatos, da responsabilidade jurídica pessoal, individual, de todo e qualquer
agente público, do controle externo a que todos eles se submetem, em se
tratando de República. Democracia, enfim, repito, que mantém com a “plena
liberdade de informação jornalística” uma relação de unha e carne, de olho e
pálpebra, de veias e sangue.
Claro que há muito mais a elogiar
em nossa Constituição, mas não em um discurso de posse. Discurso que, pelo que
vejo ao redor, nem se faz acompanhar de um bonito arranjo de flores para tornar
a plateia menos indefesa. Por isso que tento abreviar as coisas, dizendo, em
síntese, o seguinte: a nossa Constituição tem o inexcedível mérito de partir do
melhor governo possível para a melhor Administração possível. A melhor Administração,
porque regida pelos republicanos e cumulativos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Dando-se
que a moralidade tem na probidade administrativa o seu mais relevante conteúdo,
pois sua violação pode acarretar a perda da função pública, suspensão dos
direitos políticos, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao Erário, sem
prejuízo da ação penal cabível e sob a cláusula de que tais ações de
ressarcimento ao Erário são imprescritíveis (§§ 4º e 5º do mesmo art. 37); ou
seja, a Constituição rima Erário com sacrário. Publicidade, a seu turno, como sinônimo perfeito de transparência ou
visibilidade do Poder. Como princípio de excomunhão à ruinosa cultura do
biombo, da coxia, do bastidor. A silhueta da verdade só assenta em vestidos
transparentes.
Já o melhor governo possível,
porque não basta aos parlamentares e aos chefes de Poder Executivo a
legitimidade pela investidura. É preciso ainda a legitimidade pelo exercício,
somente obtida se eles, membros do poder, partindo da vitalização dos
explícitos fundamentos da República (”soberania”, “cidadania”, “dignidade da
pessoa humana”, “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”,
“pluralismo político”), venham a concretizar os objetivos também explicitamente
adjetivados de fundamentais desse mesmo Estado republicano (”construir uma
sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento nacional”,
“erradicar a pobreza e a marginalização (a maior de todas as políticas
públicas) e reduzir as desigualdades regionais e sociais”, “promover o bem de
todos, sem preconceitos de qualquer natureza”. Posição em que também fica o
Poder Judiciário, estrategicamente situado entre os fundamentos da República e
os objetivos igualmente fundamentais dessa República. Mas há uma diferença, os
magistrados não governam. O que eles fazem é evitar o desgoverno, quando para
tanto provocados. Não mandam propriamente na massa dos governados e
administrados, mas impedem os eventuais desmandos dos que têm esse originário
poder. Não controlam permanentemente e com imediatidade a população, mas têm a
força de controlar os controladores, em processo aberto para esse fim. Os
magistrados não protagonizam relações jurídicas privadas, enquanto magistrados
mesmos, porém se disponibilizam para o equacionamento jurisdicional de todas
elas. Donde a menção do Poder Judiciário em terceiro e último lugar (há uma razão lógica e cronológica) no rol dos Poderes
estatais (primeiro, o Legislativo, segundo, o Executivo, terceiro, o
Judiciário), para facilitar essa compreensão final de que o Poder que evita o
desgoverno, o desmando e o descontrole eventual dos outros dois não pode, ele
mesmo, se desgovernar, se desmandar, se descontrolar. Mais que impor respeito,
o Judiciário tem que se impor ao respeito, me ensinava meu pai, João Fernandes
de Britto juiz de direito de carreira do Estado Sergipe e da minha cidade
Propriá.
Numa frase, se ao Direito cabe
ditar as regras do jogo da vida social, mormente as que mais temerariamente
instabilizam a convivência humana (o Direito é o próprio complexo das condições
existenciais da sociedade, como ensinava Rudolf Von Ihering), o Poder
Judiciário é que detém o monopólio da interpretação e aplicação final do
sistema de normas em que esse Direito consiste. É a definitiva âncora de
cognição e aplicabilidade vinculativa do Direito, como uma espécie de luz no
fim do túnel das nossas mais acirradas e até odientas confrontações
(derramamento de bílis não combina com produção de neurônios). É o Poder que
não pode jamais perder a confiança da coletividade, sob pena de esgarçar o
próprio tecido da coesão nacional.
Pronto! Concluo este passar em
revista a nossa Constituição para dizer que ela, sabendo-se primeiro-mundista,
investiu na ideia de um Poder Judiciário também primeiro-mundista. Por isso que
dele fez o único Poder estatal integralmente profissionalizado. Centralmente
estruturado em carreira e sob os mais rigorosos critérios de investidura, assim
no plano do conhecimento técnico quanto do comportamento ético (para os
magistrados sempre vigorou a lei da ficha limpa).
Habilitou-o a melhor saber de si
e dos outros Poderes, pois as respectivas linhas de competência funcional são
por ele, Poder Judiciário, interpretadas e aplicadas com definitividade. A
Constituição impôs aos juízes de primeiro grau a frequência e o aproveitamento em cursos de formação e aperfeiçoamento técnico, até como
pressuposto de promoção na carreira. Tudo isso de parelha com a imposição de
bem mais rígidas vedações, de que servem de amostra a sindicalização e a greve,
filiação a partido político, participação em custas processuais, acumulação de
cargos (salvo uma função de magistério), percepção de horas extras, mesmo
sabendo que nenhuma categoria funcional-pública supera os magistrados em carga
de trabalho, inumeráveis que são as chamadas “ações judiciais”. Todos nós
magistrados, quando vamos nos recolher à noite, para o merecido sono, dizemos
mentalmente ou inconscientemente, “Senhor, não nos deixeis cair em tanta ação”.
Enfim, a Constituição conferiu aos magistrados a missão de guardá-la por cima
de pau e pedra, se necessário, por serem eles os seus mais obsessivos
militantes (a adjetivação de “obsessivo” é da ilustrada jornalista Dora
Kramer). Por isso que eles, os magistrados, fazem do compromisso de posse uma
jura de amor. E têm que transformar seus pré-requisitos de investidura - como o
notável saber jurídico e a reputação ilibada - em permanentes requisitos de
desempenho.
Agora eu termino com a parte mais
devocional da função judicante. Peço vênia para fazê-lo. Os magistrados julgam
os indivíduos (seus semelhantes, frise-se), os grupos sociais, as demandas do
Estado e contra ele, os interesses todos da sociedade. O Poder Legislativo não
é obrigado a legislar, mas o Poder Judiciário é obrigado a julgar. Tem que
fazê-lo com a observância destes requisitos mínimos:
I - com um tipo de preparo
técnico ou competência profissional que vai da identificação dos dispositivos,
e às vezes são tantos aplicáveis ao caso, à revelação das propriedades
normativas deles (os textos jurídicos a interpretar são ondas de possibilidades
normativas, para me valer de expressão cunhada pelos físicos quânticos do
início do século XX e a propósito das partículas subatômicas dos prótons, elétrons
e nêutrons);
II - com serenidade ou equilíbrio
emocional, pois é direito subjetivo fundamental do jurisdicionado saber que o
seu processo está sob os cuidados de um jurisdicionante sereno, equilibrado,
calmo. Calma, porém, que não se confunde com lerdeza, tendo em vista o direito
constitucional “à razoável duração do processo”, com os meios “que garantam a
celeridade de sua tramitação” (inciso LXXVIII do art. 5º);
III - sem confundir jamais o
papel de julgador com o de parte processual, pois o fato é que juiz e parte são
como água e óleo: não se misturam;
IV - tratando as partes com
urbanidade ou consideração, o que implica o descarte da prepotência e da pose.
Permito-me a coloquialidade da vez: “Quem tem o rei na barriga um dia morre de
parto”;
V - promovendo a abertura das
janelas dos autos para o mundo circundante, a fim de conhecer a particularizada
realidade dos seus jurisdicionados e as expectativas sociais sobre a decisão
objetivamente justa para aquele tipo de demanda. Juiz não é traça de processo,
não é ácaro de gabinete, e por isso, sem fugir das provas dos autos nem se
tornar refém da opinião pública, tem que levar os pertinentes dispositivos
jurídicos ao cumprimento de sua, pouco percebida, mediata ou macro-função de
conciliar o Direito com a vida. Não apenas de sua imediata ou micro-função de
equacionar conflitos entre partes nominalmente identificáveis,
exigindo-se-lhe, no entanto, fundamentação rigorosamente científica;
VI - outro papel do magistrado
contemporâneo, distinguir entre normas que fazem o Direito evoluir apenas por
modo tópico ou pontual, à base de modestos critérios de conveniência e
oportunidade, e normas decididamente ambiciosas quanto à matéria por elas
conformadas, pois, agora sim, ditadas por critérios de imperiosa necessidade.
Normas, estas últimas, que, infletindo sobre a cultura mesma de um povo para
qualitativamente transformá-la com muito mais denso teor de radicalidade, fazem
do Direito um mecanismo de controle social e ao mesmo tempo um signo de
civilização avançada. Por isso que demandantes, essas normas, de interpretação
ainda mais objetivamente fundamentada, pois vão além da simples introdução de
novos comportamentos sociais para mudar mentalidades e assim transformar as
pessoas. E nós sabemos que há pessoas que experimentam imensa dificuldade para
enterrar ideias mortas. A exemplo daquelas normas que, na Constituição mesma,
consagram políticas públicas de enfrentamento dos fatores de desigualdades
sociais, aqui embutidas as que democratizam o acesso das pessoas economicamente
débeis à Justiça e que prestigiam o aparelhamento das Defensorias Públicas. Ou
as normas de cerrado combate à improbidade administrativa e complementarmente
propiciadoras das ações de ressarcimento ao Erário. As promocionais da inata
dignidade das mulheres, dos negros, dos sofredores de deficiência física ou
mental e as chamadas “lei da ficha limpa”, “Maria da Penha”, “Estatuto da
Criança e do Adolescente”, “Código de Defesa e Proteção do Consumidor”,
“PROUNI” ou universidade para todos, Lei de Acesso à Informação, comentada
ainda há pouco em um diálogo franco com a eminente presidenta da República,
Dilma Rousseff. Normas ainda definidoras de um desenvolvimento nacional em que
a livre iniciativa exerce um papel de vanguarda, conciliatoriamente com os
valores sociais do trabalho, fortalecimento do mercado interno, criação e
refinamento de tecnologias nacionais, proteção e preservação do meio ambiente
(nunca podemos esquecer que as matas virgens são as que mais procriam);
VII - manejar, diante do caso ou
das teses em confronto, os dois conhecidos hemisférios do cérebro humano. Esse
é um papel atualíssimo, contemporâneo, dos magistrados. Os dois hemisférios são
categorizados como tais pela física quântica e pela neurociência. Manejar o
lado direito do cérebro, no qual se aloja o sentimento. O lado esquerdo, lócus
do pensamento. No sentimento, a geração da energia a que chamamos de intuição,
contemplação, imaginação, percepção, abertura para o outro e também para a
sociedade em geral, disposição para dialogar com a própria existência, presentificar
a vida e assim compartilhar a experiência que Heráclito (540/480) traduziu com
a máxima de que “o ser das coisas é o movimento”. “Ninguém entra duas vezes nas
águas de um mesmo rio”, pois o fato é que na vida tudo muda, menos a mudança.
Só o impermanente é que é permanente, só o inconstante é que é constante, de sorte que a única questão fechada dever ser a abertura para o
novo. Embora não devamos confundir o novo com o fashion. Se tudo é incerto, é
porque é certo mesmo que tudo seja incerto. Se tudo é teluricamente inseguro,
que nos sintamos seguros na telúrica insegurança das coisas. É o nosso lado
emocional, feminino, artístico, amoroso, sensitivo, corajoso, por saber que
quem não solta as amarras desse navio de nome coração corre o risco de ficar à
deriva é no próprio cais do porto. Que é a pior forma de ficar à deriva. Lado
do cérebro mais sanguineamente irrigado, a ciência comprova isso, o lado
feminino, e que tanto nos catapulta para o mundo dos valores (bondade, justiça,
ética, verdade e estética, sobretudo), quanto nos livra das garras da mesmice.
Com a virtude adicional de abrir os poros do pensamento ou inteligência dita
racional para que ela se faça ainda mais clara, mais profunda e mais alongada
no seu funcionamento. Já o hemisfério esquerdo do cérebro, este é o lócus do pensamento, conforme dito há pouco. A nossa banda
neural da técnica e da Ciência. Matriz de uma outra modalidade de energia
vital, multitudinariamente designada por ideia, conceito, silogismo, teoria,
doutrina, sistema e todo o gênero de abstrações que estamos aptos a fazer como
seres dotados de razão. Logo, pensamento que é sinônimo de inteligência
racional ou lógica ou intelectual ou reflexiva ou cartesiana, responsável por
um tipo de conhecimento que se obtém, não de chapa, não de estalo, como um
raio que espoca no céu, porém por metódicas aproximações de um objeto
necessariamente isolado ou fechado em si mesmo. O cientista é aquele que sabe
cada vez mais sobre cada vez menos. À guisa de parte sem um todo (no sentimento
é o contrário, um todo sem partes). Por isso que chamado o científico de
conhecimento indireto ou discursivo ou especulativo, assim como quem se
aproxima de um campo minado ou fortaleza inimiga. Lado, enfim, que nos leva a
idolatrar a segurança, tanto quanto o hemisfério direito nos conduz à justiça.
É o nosso hemisfério viril, não sendo por acaso que o Direito seja uma palavra
masculina, enquanto a justiça, uma palavra feminina. Também não sendo por
coincidência que o substantivo sentença venha do verbo sentir, na linha do que
falou esse gênio da raça que foi o sergipano Tobias Barreto: “Direito não é só
uma coisa que se sabe, mas também uma coisa que se sente”. Precedido por Platão
(…) e seguido por Max Scheler, numa linha mais filosófica e holista, a saber:
Platão (427/347 a.C.) - “Quem não começa pelo amor nunca saberá o que é
filosofia”; Sheler - “O ser humano, antes de ser um ser um ser pensante ou
volitivo, é um ser amante”;
X - entender, o juiz, que é
justamente desse casamento por amor entre o pensamento e o sentimento que
se pode partejar o rebento da consciência. Terceira categoria neural que nos
unifica por modo superlativo ou transcendente dos pólos primários do sentimento
e do pensamento. Consciência que já corresponde àquele ponto de equilíbrio que
a literatura mística chama de “terceiro olho”. O único olho que não é visto,
mas justamente o que pode ver tudo. Holisticamente, esfericamente, sabido que
no interior de uma circunferência é que se fazem presentes todos os ângulos da
geometria física, e, agora, da geometria humana. Consciência, em suma, que nos
leva a transitar do sensível para o sensitivo e do humano para o humanismo. E
que nos habilita a fazer as refinadas ou sutis distinções entre reflexão e
percepção, entendimento e compreensão, conhecimento e sapiência, segurança e justiça,
Estado e sociedade civil, sociedade civil e nação. Esta última como realidade tridimensionalmente
temporal, porquanto enlaçante do passado, do presente e do futuro do nosso
povo. Laço que prende a ancestralidade, a contemporaneidade e a posteridade da
nossa gente.
Encerro o discurso. Fazendo-o,
proponho aos três Poderes da República a celebração de um pacto. O que me
parece mais simples e ao mesmo tempo necessário, e, ao fazê-lo, tenho certeza
de que estarei falando em nome de todos os ministros desta Casa de Justiça, que
é um pacto do mais decidido, reverente e grato cumprimento da Constituição. Um
pacto pró-Constituição, portanto. Pelo que, simbolicamente, anuncio que,
ministro Joaquim Barbosa e eu estaremos distribuindo aos presentes, por ocasião
dos cumprimentos formais, um exemplar atualizado dela mesma, Lei Fundamental do
País. Impresso por atenciosa autorização do presidente do Senado Federal e do
Congresso Nacional, senador José Sarney, a meu pedido. Senador a quem agradeço
e formulo votos de pronta recuperação de saúde.
Senhora Presidente Dilma
Rousseff, receba os meus respeitosos e carinhosos cumprimentos pela sua
presença a esta solenidade de minha posse e do ministro Joaquim Barbosa nos
cargos de presidente e vicepresidente, respectivamente, do Conselho Nacional de
Justiça. Também assim o vice-presidente da República, Michel Temer, amigo
pessoal desde os anos 70 do século passado. Cumprimento que ainda estendo ao
Presidente da Câmara Federal, deputado Marco Maia, à senadora Marta Suplicy, ora
respondendo pela presidência do Senado da República, todos na honrosa companhia
do Exmo. Sr. Procurador Geral da República, Roberto Gurgel Santos, e do
presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, a quem
emocionadamente agradeço, Dr. Roberto e Dr. Ophir, pela afetiva e até mesmo
cativante saudação que me dirigiram. O século XXI é o século da afetividade.
Sem afetividade não pode haver efetividade do Direito. A mim e ao ministro
Joaquim Barbosa. Vou além para dizer aos queridos servidores da Casa, com quem
passarei a trabalhar com toda honra, e mais a tantas respeitáveis autoridades e
amigos tantosque se deslocaram para este recinto. Em especial, permito-me citar
alguns nomes, sem a pretensão de excluir absolutamente ninguém. Refiro-me a Daniela
Mercury, artista e cidadã admirável, simpatia de gente, que nos regalou com uma
interpretação maravilhosamente personalizada do hino nacional. Refiro-me a
Roberto Dinamite, ídolo vascaíno de sempre, Romário, Dora Kramer, Ziraldo, Leda
Nagle, Milton Gonçalves, Antônio Carlos Ferreira.
Cinco últimos e breves registros:
o primeiro, para saudar à distância Celso Antônio Bandeira de Mello e Fábio
Comparato, queridos amigos, referências de preparo científico, ética e
cidadania, que não puderam estar presentes a esta nossa posse. O segundo, para
agradecer as palavras do ministro Celso de Mello, essa enciclopédia jurídica e
cultural da nossa Casa, palavras tão repassadas de desvanecedora amizade e
reveladoras de uma inexcedível qualidade literária, tão própria de Sua
Excelência. O terceiro, para dizer ao ministro Peluso que é uma honra sucedê-lo
na presidência do Supremo e do CNJ; ele, ministro Antônio Cezar Peluso, que tão
ilustra os anais desta nossa Instância Suprema e ao mesmo tempo Tribunal
Constitucional com o seu denso estofo cultural, inteligência aguda, raciocínio
tão aristotélica ou cartesianamente articulado quanto velocíssimo, técnica
argumentativa sedutora e vibrante a um só tempo.
Tenho a honra de ser seu colega e
de sucedê-lo na presidência. A quarta anotação vai para o ministro Joaquim
Barbosa, também paradigma de cultura, independência e honradez, com quem
partilharei mais de perto a dupla gestão que ora me é confiada. O quinto e
último registro é para a minha família. Inicialmente, meus oito irmãos aqui
presentes, com seus esposos e esposas, meus cunhados, mais um irmão que não
pôde se deslocar da minha querida Propriá, e outro irmão que está aqui, sim, no
meio de nós, mas substituindo seu belo e alegre corpo físico pela feérica luz
do seu amoroso espírito: Márcio. Feérica luz que neste local também se
esparrama por efeito da eternal lembrança do meu pai, João Fernandes de Britto,
e de minha mãe, Dalva Ayres de Freitas Britto, ícones desta minha vida terrena
e de outras vidas que ainda terei, porquanto aprendi com eles dois que o nada,
o nada não pode ser o derradeiro anfitrião de tudo. Em sequência, saúdo meus
cinco amados filhos, Marcel, Adriana, Adriele, Tainan, Narinha, na companhia
dos meus igualmente amados netos Bruninha, Lucas, João Paulo e Davi, além dos
meus estimados genros e noras. Por último, ponho meus olhos nos olhos de Rita,
mulher com quem durmo e acordo, e que também é a mulher dos meus sonhos. Mulher
a quem digo que tinha mesmo que ser abril o mês desta minha posse. Pois abril foi
o mês em que nos conhecemos. O dia 9 foi a cereja do bolo. Rubra como a pele
das manhãs ainda no talo das madrugadas. Doce como o gosto da minha vida, Rita,
ao seu lado desde então.
Obrigado a todos.
Brasília, 19 de abril de 2012.