ESTADOS E MUNICÍPIOS SOB EXTORSÃO
A redução da taxa de juros
básica, a Selic, prevista para 9% ao ano, evidencia a extorsão a que estão
submetidos Estados e municípios em razão dos contratos firmados com o governo
federal no final dos anos 1990. A não correção de distorções posteriores,
causadas por mudanças na economia, levou a uma situação injusta e a um equívoco
econômico, e sua retificação não aumentaria a dívida pública consolidada nem
comprometeria a boa gestão fiscal, permitindo ainda a elevação da taxa de
investimento público, cujo baixo nível traz danos imensos ao nosso
desenvolvimento.
Esses contratos representaram uma
corajosa inovação do governo FHC. A irresponsabilidade fiscal e os juros altos
tinham levado Estados e alguns municípios a uma situação de pré-insolvência.
Por isso mesmo se aprovou, em 1997, uma lei de refinanciamento de dívidas
estaduais, logo estendida a 180 municípios. Houve uma grande operação de troca
de ativos e emissão de dívidas pelo Tesouro Nacional, que refinanciou as
dívidas estaduais e municipais com encargos financeiros então subsidiados e
prazo de pagamento em até 30 anos.
A fim de que a situação não se
repetisse, aos Estados e municípios foram proibidas a emissão de títulos de
dívida mobiliária e operações de crédito antecipando receitas orçamentárias. A
Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, deu o contorno final ao novo
estilo no manejo nas finanças públicas estaduais e municipais, que ao longo do
tempo foi mostrando mais qualidade do que o próprio manejo federal. O sucesso
foi tal que governos estaduais e prefeituras passaram a ser os principais
responsáveis pelo aumento do superávit primário do setor público consolidado.
Recentemente, a imprensa internacional comentou que essa experiência brasileira
é um modelo para a União Europeia em crise. Teria razão caso fosse a Europa uma
República federativa…
É pouco sabido que LRF não se
aplica em sua plenitude às finanças federais. Isso depende de resolução do
Senado, de iniciativa do Executivo, que nada fez. Por que os arautos da boa
política fiscal ou da transformação do Banco Central no quarto Poder da
República nunca chamam a atenção para essa falha? Um mistério. Além disso,
desfrutando amplos graus de liberdade, o governo federal executa um orçamento
paralelo (via vultosos restos a pagar de orçamentos anteriores e créditos
subsidiados do BNDES ao setor privado) e para fechar números do déficit
antecipa dividendos e tributos de bancos e empresas estatais (e não estatais) e
até receitas, transformando barris de petróleo ainda no pré-sal em
transferências da Petrobrás ao Tesouro.
Voltando à lei de 1997: o
indexador dos contratos de refinanciamento a Estados e municípios foi o Índice
Geral de Preços da Fundação Getúlio Vargas, o IGP-DI. A taxa de juros foi
fixada entre 6% e 9% acima do índice, dependendo da amortização extraordinária
do saldo devedor. Na época, os juros reais chegavam a 15%, daí o subsídio. No
Congresso foi introduzido um teto para o pagamento anual dos serviços da
dívida, de 13% das receitas orçamentárias líquidas.
O IGP-DI acabou sendo um índice
ruim, demasiado dependente de choques cambiais e preços de commodities. Apesar
do advento do regime de câmbio flutuante, o governo manteve-o como
superindexador das dívidas estaduais e municipais. E as taxas de juros,
encavaladas nessa supercorreção, tornaram-se altas demais: até cinco ou seis
pontos acima da Selic. Enquanto cobra 14% ou mais das prefeituras e 12,5% de
alguns Estados, o governo empresta a grandes grupos privados, via BNDES, a
juros de 4% a 5%.
Em 2010 o serviço da dívida dos
Estados foi de R$ 29 bilhões, equivalentes a 62% do seu investimento total.
Paga-se bastante, mas, mesmo assim, o principal vem aumentando, como é o caso
da capital paulista, cuja dívida cresceu cerca de cinco vezes entre 2000-2011,
apesar do pagamento de R$ 16 bilhões! Se, em vez do IGP mais 9%, a dívida da
cidade acompanhasse a Selic, os encargos acumulados em 2011 seriam R$ 17
bilhões menores!
Os diagnósticos sobre essa
perversidade são numerosos e quase consensuais. Uma das propostas é óbvia:
atrelar retroativamente as dívidas à Selic. Há, além disso, uma medida simples
e fácil: permitir que a relação dívida/receita corrente líquida dos municípios
seja a mesma dos Estados, ou seja, 2, em vez de 1,2, como é hoje.
Mas, afinal, por que nada tem
sido feito de prático para eliminar essa perversidade? Um fator é a
possibilidade de decisões discricionárias, dando-se autorizações especiais para
este ou aquele captar créditos ou até receber contribuições fiscais diretas.
Prática nada republicana, para usar termo em moda.
Há, porém, um erro mais
importante em curso: a ideia de que todos os problemas federativos – dívida,
royalties, Fundo de Participação dos Estados, guerra fiscal predatória –
deveriam ser resolvidos simultaneamente num grande pacto! Bela fórmula para o
imobilismo, lamentações, discursos triviais e comissões de alto nível. A
estratégia correta é a oposta: resolver um problema de cada vez, sem excluir
possíveis compensações localizadas transitórias, começando pelo mais fácil, que
é o das dívidas – a ponta do barbante para desatar o novelo federativo.
Se isso for equacionado, os
Estados e municípios teriam acesso a mais recursos. Mas deveria exigir-se,
formalmente, uma contrapartida, que tudo fosse destinado a investimentos. Ao
contrário do folclore, as esferas estaduais e municipais, na média, são mais
ágeis do que a federal para investir. Já dão conta, aliás, de uns dois terços
do total dos investimentos governamentais no Brasil (excluindo empresas). O
efeito seria altamente positivo num país onde tais investimentos, como fração
do produto interno bruto (PIB), são dos menores do mundo – uns cinco pontos
porcentuais abaixo da média no restante da América Latina.
ESTADO DE SÃO PAULO / OPINIÃO /
JOSÉ SERRA /
Estados e Municípios sob extorsão / 22/03/2012.