MANAUS DA MINHA
INFÂNCIA
Lisboa
– A Manaus da minha infância era muito pequena. Acolhedora, segura, as pessoas
ficavam de noite conversando nas calçadas, à bordo de suas cadeiras de balanço.
Muito calor. Não havia ar condicionado. As famílias dormiam de janelas abertas.
Mas
a cidade era mesmo pequena. Todo mundo se conhecia. As distâncias se equivaliam
a distância nenhuma.
Aprendi
a nadar, pelos braços fortes de meu pai, nas águas do Mindú. Águas puras,
límpidas, que a especulação imobiliária, misturada com a falta de prefeitos de
pulso, estragou. Os igarapés, tantos!, eram todos assim. As crianças se
esbaldavam. A água gelada combinava bem com o sol abrasivo da minha terra.
"Matei"
aulas para ir nadar nos Educandos, junto com meus colegas de então. Irritávamos
os donos das pequenas embarcações, pegando carona nas "defensas". Lá
vinham eles com cinturões, tentando atingir-nos nas mãos: "moleques
endiabrados, vocês merecem apanhar muito!".
Minha
tia Finoca era dona de um balneário, que chamávamos de "banho", ali
para as bandas da Chapada. Ela e o tio Zé Jorge.
Minha
mãe, meu pai e os quatro filhos morávamos na Eduardo Ribeiro, ao lado do Ideal
Clube. Hoje, qualquer rapaz – ou moça – é capaz de ir correndo dali até a
Chapada. Pois na minha infância, parecia uma travessia de oceano. Aos sábados,
se nos tivéssemos comportado bem durante a semana e se nenhuma tivéssemos
aprontado na aula de catecismo da Igreja de São Sebastião, conquistávamos a
autorização para ir com tia Finoca para o "banho" dela, o
Castrolândia. Íamos no sábado de manhã, após o catecismo, e retornávamos no
domingo, antes de escurecer. Quando havia feriadão, melhor ainda. Nas férias, o
máximo dos máximos.
No
Castrolândia, nadávamos, jogávamos vôlei, comíamos um peixe enterrado em folha
de bananeira que o sol cozinhava. Conversávamos fiado, ríamos muito.
A
tia amava – e nós também – seus dois cachorros, a Ronda e o Piloto, ambos
perdigueiros. Ronda, reservada e amiga. Piloto, espalhafatoso e amigo também.
Era
um grande passeio da cidade ir aos "banhos" nos fins de semana. A
cara daquela Manaus que levaram embora e nunca mais me devolveram. Nem a mim
nem a ninguém que a ame de verdade.
Tia
Finoca era um anjo de pessoa. Ingênua, cheia de boa fé. Acreditava em tudo e em
todos. Um dia, apareceu no Castrolândia, convidado sei lá por quem, um jovem
carioca que queria mesmo era vender títulos de um suposto clube, "em
construção", na erma Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro daqueles tempos.
Apesar de menino, chamei-a num canto e lhe disse: "tia, você não conhece
esse cara. Tem toda a pinta de enganação". Ao que ela me respondeu:
"mas meu filho, ele é do Rio, da capital da República". Tanto insisti
que ela, um tanto contrariada, acabou não comprando o tal título.
Com
o crescimento desordenado e vertiginoso da cidade, multiplicaram-se as mazelas.
Favelas, miséria, criminalidade, prostituição, habitações infranormais. A
cordialidade começou a ceder terreno para a selvageria. O êxodo do interior, na
direção de Manaus, transferia pessoas que poderiam ser felizes em seus locais
de origem e, muitas vezes, viam todo o seu mundo se desintegrar: perdiam a
autoestima, seus filhos pegavam descaminhos, o olhar tristonho substituía a paz
própria de quem conhece a mata, domina o rio, convive com os animais e pesca
como ninguém. Perdiam a lua, o poente que lhes poetizava o cotidiano, a
sensação de mistério que a floresta passa.
Fui
para o Rio. Voltava a Manaus nas férias. Numa dessas viagens, tia Finoca, uma
das pessoas que mais amei em minha vida, me segredou, do alto de sua pureza e
ingenuidade: "meu filho, Manaus está virando uma metrópole. Já tem cada
crime horrível". Para ela e para muitas pessoas de sua geração, crime
também era sinal de progresso. E olhem que não estou pregando que o homem do
interior "seja feliz" sem estudar, sem cuidados de saúde, sem
possibilidades de abrir caminhos para os seus filhos. Nunca! Sou contra é
jogá-lo na cidade grande sem nenhum cuidado e dele fazer mera estatística de
boletins de ocorrência dos Distritos Policiais. Jamais preguei que Manaus não
crescesse, pois isso equivaleria a pedir aos meus filhos e netos que
permanecessem eternamente crianças, para meu puro, simples e egoísta deleite.
Jamais! Sou contrário é ao crescimento desatinado, que amesquinha a vida das
pessoas e dá até aos mais ricos a falsa sensação de que vivem bem.
Mas
se tia Finoca tivesse razão, o progresso estaria estampado, então e também, na
poluição dos igarapés. Águas pútridas como sinônimo de prosperidade. Que tal?
Esgotos a céu aberto como exemplo de avanço econômico. Afinal, há quem
enriqueça com isso, embora a grande maioria das pessoas permaneça pobre, muitas
delas perto da miserabilidade, sem futuro, roubadas no seu passado e donas
apenas de um presente amargo.
Metrópoles
de crimes horrendos e igarapés mal cheirosos não servem de modelo para a Manaus
que amo de paixão. Tenho saudades da cidade íntima, de "muro baixo",
da minha infância. Não a quereria eternamente assim, todavia. Sonhava com o
equilíbrio. Osaka resgatou suas águas. Logo, o sonho é realizável.
Crescer
é preciso. Gerar infelicidade social não é preciso.
Pelo
menos vou morrer acreditando que pode e deve ser assim.