PRISIONEIRO DO RESSENTIMENTO
Do Estado de S. Paulo, 23/05/2012
Mais velho,
mais sofrido - e nem por isso mais sábio -, o ex-presidente Lula levou para a
Câmara Municipal de São Paulo, onde receberia na segunda-feira o título de
Cidadão Paulistano, as suas obsessões e os seus fantasmas: as elites e o
mensalão. Ao elogiar no seu discurso a gestão da prefeita Marta Suplicy, ele se
pôs a desancar a "parte da elite" de cujo preconceito ela teria sido
vítima "porque ousou governar para os pobres". Marta fez os CEUs
(centros educacionais unificados), exemplificou, para acolher crianças de
favelas, algo inaceitável para aqueles que não querem que os outros sejam
"pelo menos iguais" a eles.
O
ressentimento de que Lula é prisioneiro o impede de aceitar que, numa
megalópole como esta, há de tudo para todos os gostos e desgostos - e não
apenas no topo da pirâmide social. Os que nele se situam, uma população que o
tempo e as oportunidades de ascensão de há muito tornaram heterogênea, não
detêm o monopólio do preconceito de classe. Durante anos, até eleitores mais
pobres, portadores, quem sabe, do proverbial complexo de vira-lata, refugaram a
ideia de votar em um candidato presidencial que, vindo de onde veio e com pouco
estudo, teria as mesmas limitações que viam em si para governar o Brasil.
Lula tampouco
admite, ao menos em público, que dificilmente teria chegado lá se o destino não
o tivesse levado a viver na mais aberta sociedade do País - que também abriga,
repita-se, cabeças egoístas e retrógradas, mas onde o talento, o trabalho e a
perseverança são os mecanismos por excelência de equalização social. Em 1952,
quando a sua mãe o trouxe com alguns de seus irmãos para cá, estava em pleno
andamento, aliás, a substituição das tradicionais elites políticas paulistas
por nomes que expressavam as mutações por que vinha passando desde a 2.ª Guerra
Mundial o perfil demográfico da capital.
Pelo voto
popular, chegaram ao poder descendentes de imigrantes e outros tantos cujas
famílias, vindas de baixo, prosperaram com a industrialização, educaram os
filhos e os integraram, à americana, na renovada estrutura política. O curso
natural das coisas, pode-se dizer, consumou a metamorfose na pessoa do
carismático torneiro mecânico pau de arara ungido presidente da República. No
Planalto, é bom que não se esqueça, ele vergastava as elites nos palanques e se
acertava na política com o que elas têm de pior. Lula se amancebou com
expoentes do coronelato do atraso, do patrimonialismo e da iniquidade - o mesmo
estamento oligárquico que contribuiu para confinar à miséria incontáveis
milhões de nordestinos.
Elas não lhe
faltaram no transe do mensalão - "um momento", repetiu pela enésima
vez o mais novo cidadão paulistano, "em que tentaram dar um golpe neste
país". Na sua versão da história, as elites, a oposição e a mídia só
desistiram de destituí-lo de medo de "enfrentarem o povo nas ruas".
Falso. Lula ainda não havia completado o trajeto da contrição - "eu não
tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir
desculpas" - à ameaça de apelar ao povo, quando a oposição preferiu não
pedir o seu impeachment para não traumatizar o País pela segunda vez em 13
anos. Pelo menos um dos homens do presidente, ministro de Estado, procurou os
líderes oposicionistas para dissuadi-los da iniciativa.
O estopim foi
o depoimento do marqueteiro de Lula, Duda Mendonça, na CPI dos Correios, em
agosto de 2005. Ele revelou ter recebido em conta que precisou abrir no paraíso
fiscal das Bahamas, a conselho de Marcos Valério, o publicitário que viria a
ser o pivô do mensalão, a soma de R$ 10 milhões pelos serviços prestados três
anos antes à campanha presidencial do petista e ao partido. Afinal, parcela da
bolada já estava no exterior e outra sairia do caixa 2 da agremiação - os
famosos "recursos não contabilizados" que Lula admitiria existir na
reunião ministerial que convocou para o dia seguinte da oitiva de Duda.
Tecnicamente, o PT poderia ter o seu registro cassado, e o presidente poderia
ser afastado, se as elites quisessem levar a ferro e fogo o combate político.
Se conspiração houve, em suma, foi para "deixar pra lá".
O Estado de
S.Paulo / Opinião / Prisioneiro do Ressentimento / 23/05/2012