CRER E PERSEVERAR
Nas duas últimas semanas apareceram alguns artigos na
mídia que ressaltam o silêncio das oposições como um risco para a democracia. É
inegável que está havendo uma "despolitização" da sociedade não só no
Brasil, mas em geral. O "triunfo do mercado" levou às cordas as
colorações políticas. Parece que tudo se deve medir pelo crescimento do PIB.
Nos países bem-afortunados, ainda que cheios de "malfeitos", não há
voz que ressoe contra os governos. Nos que caem em desgraça sem terem feito a
"lição de casa" - sem terem gerado um "superávit primário"
-, aí sim, os governos em exercício pagam o preço. Caem porque são vistos como
incapazes de assegurar o bom pagamento aos mercados. Não importa ser de
coloração mais progressista ou mais conservadora. Caem sem que tenha havido um
debate político-ideológico que mostre suas fraquezas eventuais, mas porque o
rancor das massas gerado pelo mal-estar econômico-financeiro se abate sobre os
líderes do momento.
O
Brasil esteve até agora ao abrigo da tempestade que desabou sobre os mercados
dos Estados Unidos e da Europa. Por mais que nossos governos errem, os decibéis
das vozes oposicionistas são insuficientes para comover as multidões. Pior
ainda quando essas vozes estão roucas ou preferem sussurrar. Como entramos em
céu de brigadeiro a partir de 2004, tanto pela virtude do que fizemos na década
anterior como pelos acertos posteriores e graças à ajuda dos chineses, fazer
oposição tornou-se um ato de contrição.
Mas
que importa? Também era assim no período do milagre dos anos 1970, durante o
regime militar. A oposição nada podia esperar, a não ser censura, cadeia ou
tortura. Não obstante, não calou. Colheu derrotas eleitorais e políticas,
resistiu até que, noutra conjuntura, venceu. Hoje a situação é infinitamente
mais fácil e confortável. Só que falta, o que antes sobrava, a chama de um
ideal: queríamos reabrir o sistema político. Hoje o que queremos? Ganhar as
eleições? Mas para quê?
Eis o enigma. Não faltam candidatos. Ainda recentemente,
em conversa analítica que fiz com uma jornalista da The Economist, ressaltei
que há vários, e não só no PSDB. Neste o mais conhecido e denso, José Serra,
amadurecido por êxitos e derrotas, não conseguiu deixar clara em 2010 sua mensagem,
embora tenha obtido 44% dos votos. O isolamento em que sua campanha ficou,
dadas as dissonâncias internas do PSDB e as dificuldades para fazer alianças
políticas, impediu a vitória. Se o candidato tivesse expressado com mais força
as suas convicções, mesmo desconsiderando o que as pesquisas de opinião
indicavam ser a demanda do eleitorado, poderia ter sensibilizado as massas.
Quem sabe por este caminho se decifre o enigma: falar à
sociedade, com força e veemência, tudo o que se sente, inclusive a indignação
pela corrupção, pela incompetência administrativa e, sobretudo, pelo escândalo
de uma sociedade que se faz mais rica com um governo que distribui muito pouco,
faz propaganda do que não concretizou inteiramente e coloca no altar os
"vencedores", mesmo quando estes ganham à custa do dinheiro do povo,
que paga impostos cada vez mais regressivos.
Outro,
mais óbvio provável candidato, graças à posição eleitoral dominante em seu
Estado e ao seu estilo de fazer política, Aécio Neves, está em fase de teste:
transmitirá uma mensagem que salte os muros do Congresso e chegue às ruas?
Encarnará a mudança com a energia necessária e o desprendimento que é o motor
da ousadia, arriscando-se a dizer verdades inconvenientes, e aparentemente
custosas eleitoralmente, para que o povo sinta que existe "outro
lado" e confie nele para abrir perspectivas melhores?
Refiro-me
aos dois por serem os mais cogitados no momento. Não são os nomes que importam
agora, mas a disposição de correr riscos e de sair da armadilha da briga partidário-eleitoral
para entrar na grande cena da opinião pública e - façamos a distinção - da
opinião popular. É evidente que o governo, qualquer governo, leva vantagens,
principalmente desde que o lulopetismo instalou a regra de que tudo vale para
manter o poder: clientelismo, propaganda abusiva, uso continuado da máquina
pública, etc. Entretanto, também no regime militar o governo levava vantagens.
Mas nós lutávamos não para ganhar no dia seguinte, mas para criar um horizonte
de alternativas.
A elucidação do enigma requer perseverança e coragem. Eu
ganhei duas eleições no primeiro turno contra Lula porque tinha uma mensagem: a
da estabilização da economia com o Real e o início da distribuição de rendas.
Mesmo sem propagandear, a pobreza deixou de atingir mais de 15 milhões de
pessoas com a estabilização dos preços e a política de aumentos reais do
salário mínimo, que começou em 1994. Não foi fácil ganhar os apoios para pôr em
ação o Plano Real, precisei brigar muito. Lula ganhou porque pregou, no início no
deserto, ser ele o portador da mensagem que levaria a um mundo melhor.
Perseverou, rodou o Brasil, abandonou a tribuna parlamentar e, no começo,
desprezou a mídia. Mostrou-se audacioso, desprendido e generoso. Se
sinceramente ou não, é outra questão: a Carta aos Brasileiros está à disposição
dos historiadores para que julguem. Mas o povo acreditou.
É esta a verdadeira questão da oposição, e deveria ser a
preocupação dos pré-candidatos: mergulhar nos problemas do povo, falar de modo
simples o que sentem e o que se pode fazer. Sem meias palavras e sem insultos.
Sem falácia, com muita convicção. Politizar a cena pública para assegurar a
democracia. Dizer quem é bom, ou melhor, o que é bom e o que é mau. Mas dizer
nas universidades, nas organizações populares, nas associações profissionais,
nas pequenas e médias cidades. Preparar nelas a mensagem - o discurso - para
mais tarde falar com credibilidade na grande cena nacional.
Quem o fizer terá chances de ser o candidato da oposição
e, eventualmente, ganhar as eleições. Isso independe de manobras de cúpula,
simpatias e interesses menores.
Não
se pense que nossa realidade será sempre o que hoje parece ser: uma sociedade
conformada, legendas eleitorais disputando mordomias no dá-cá-toma-lá entre
governo e congressistas e a voz do governo a tonitruar como um trovão divino, a
que todos se curvam prestimosos. É só mudar a conjuntura e a cena muda, se a
oposição apresentar alternativas. Mesmo que não mude, nada deve alterar nossos
valores e convicções. Continuemos com eles, pois "água mole em pedra dura
tanto bate até que fura".
O
Estado de São Paulo / Notícias / Espaço Aberto / Crer e Perseverar / 05 de fevereiro de 2012
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