FAZER FILME NO IRÃ
Depois de assistir ao extraordinário
"A separação", candidato ao Oscar de melhor filme estrangeiro,
não há como não pensar em como é complexo e controvertido esse Irã que produz
aiatolás, fabrica um tirano como Mahmoud Ahmadinejad e a bomba atômica
(supostamente), e cria um regime jurídico que autoriza a morte de adúlteras a
pedradas, ao mesmo tempo em que fornece ao mundo um cineasta como esse Asghar
Farhadi, que faz parte de um time que já deu ao cinema iraniano centenas de
prêmios nos últimos anos e que, apesar disso, é duramente perseguido pelo
governo. Só no ano passado cerca de 50 deles foram presos, inclusive a atriz
Marzieh Vafamehrha, condenada a um ano de prisão e 90 chicotadas por
interpretar num filme uma jovem que tenta deixar o país por não suportar mais o
sufoco político.
Outro condenado, Jafar Panahi, ficou
famoso por ter desafiado a proibição de filmar por 20 anos, realizando
"Isto não é um filme" em prisão domiciliar, enquanto aguardava a
confirmação da sentença de seis anos de detenção. Feito com a ajuda de um amigo
também diretor, o "autodocumentário" em que Panahi aparece lendo o
roteiro do filme que não pôde fazer, saiu do país num pen drive escondido
dentro de um bolo e, levado ao Festival de Cannes, foi aclamado.
"A separação" é diferente.
Não é um manifesto político, não denuncia, por exemplo, que a vida de uma
mulher no Irã vale legalmente a metade da de um homem, tanto quanto seu
testemunho perante um juiz, e nem mostra chibatadas ou execuções a pedradas.
Trata-se da história de dois casais, um dos quais de classe média em processo
de divórcio: a mulher quer partir com a filha adolescente para um país do
Ocidente, mas o homem se recusa a acompanhá-la, alegando a doença do pai, que
sofre de Alzheimer. O outro casal entra no episódio por acaso.
Há um incidente, um empurrão, um tombo,
a morte de um bebê por nascer, e os quatro vão parar num tribunal de pequenas
causas, onde se passa grande parte do filme. A conexão entre esses fatos da
vida privada e o pano de fundo político, religioso e social do Irã é tecida de
maneira sutil, afastando o óbvio e o explícito. O conflito é desenvolvido por
meio de diálogos que estabelecem um debate moral e ético entre os personagens.
Primoroso do ponto de vista cinematográfico, "A separação" prova que,
quando bem feito, um filme sobre cenas do cotidiano doméstico pode ser tão ou
mais eficaz politicamente do que um panfleto de claras intenções políticas.
Farhadi explica sua opção comparando o
ato de fazer cinema no Irã a uma luta de boxe. Segundo ele, há pugilistas que
se movimentam muito, "desferindo golpes a torto e a direito. E há os mais
tranquilos, observadores, que esperam o rival baixar a guarda para desfechar
seu golpe. Faço parte deste segundo grupo".
O GLOBO / BLOGS / RÁDIO DO MORENO / 01.02.2012.
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