Marco Aurélio Nogueira
Dadas as
características da conjuntura atual, em que o espectro da «crise» agita-se sem
cessar, creio ser útil recordar algumas observações que o filósofo e político
italiano Antonio Gramsci fez há 70 anos em sua reflexões sobre Maquiavel.
Analisando
as situações nas quais a classe dirigente fracassa em um determinado
empreendimento político, «em nome do qual pediu ou impôs pela força o consenso
das grandes massas», Gramsci comentou: nesses casos, fala-se em «crise de
autoridade», mas o que se verifica é uma «crise de hegemonia, ou crise do
Estado no seu conjunto».
Valeria
isso para o Brasil? Seria possível dizer que a nossa crise deriva do fato de
que a classe dirigente fracassou em seu principal empreendimento político e por
isso perdeu o consenso e o consentimento das massas?
Com o
devido cuidado e sem querer forçar o raciocínio, acho que sim. Talvez se possa
mesmo afirmar que, a rigor, no plano histórico mais geral, nenhuma classe
dirigente conseguiu exercer uma efetiva hegemonia entre nós, desde que
entendamos por hegemonia a capacidade de obter apoio ativo e imprimir uma
direção moral e intelectual à sociedade. Isso, porém, nos levaria longe demais.
Mas há
algo que não precisa ser muito investigado: é que a nossa atual classe
dirigente -- que congrega em sua base uma diversidade de grupos e interesses -
nunca chegou a apresentar, aos brasileiros, um desenho de país e uma moral que
a credenciassem à hegemonia. Seu projeto sempre foi o da estabilização da
moeda, secundado por uma vaga ideia de modernização entendida como «abertura
para o mundo» e por uma categórica opção pelo «mercado».
Nunca
contou ao povo que País estava disposta a construir, nunca o conclamou a aderir
a algo mais substantivo. Pois agora, quando a moeda fraqueja, o mercado aposta
contra o governo e esse se entrega a uma mera radicalização de sua idéia
matriz, como dizer que temos apenas uma «crise de autoridade» ou de
governabilidade? Estamos diante de uma profunda ausência de hegemonia.
Isso,
porém, não quer dizer que o fracasso do governo seja absoluto ou que já
amadureceu uma nova capacidade hegemônica, quer dizer, uma nova disposição de
forças que traga consigo um outro empreendimento político -- um outro projeto
-- e possa em nome dele postular a condução das massas.
Se a
crise é de hegemonia, diria Gramsci, podemos esperar que dela resultem muitas
«situações delicadas e perigosas», pois os diversos grupos da população não têm
«a mesma capacidade de se orientar e se reorganizar rapidamente».
Nem
sempre se produzem autênticas soluções orgânicas, impostas pela fusão dos
oposicionistas e dos que estão fora do poder. Podem surgir, por exemplo,
soluções de outro tipo, fundadas na força ou na atividade de homens
providenciais ou carismáticos.
Donde ser
possível prever que a crise dos nossos dias não está necessariamente fadada a
convergir para desfechos que beneficiem os grupos sociais desfavorecidos e os
setores de oposição. Não que estejamos sendo impelidos para retrocessos
autoritários ou para a revivescência de taras personalistas.
Mas, como
em toda crise orgânica em países extensos, de população numerosa e
diferenciada, com um sistema político fragilizado e atolado em vastos
problemas, o fato é que a oposição nem sempre se mexe com rapidez e o governo
ainda tem boas chances de se recompor, fazer alguns «sacrifícios» e retomar o
controle da situação.
Tanto
mais se conseguir contar com conjunturas internacionais favoráveis.
O que não
parece destinado a desaparecer é o nervo do problema: justamente a crise de
hegemonia, crise do Estado em seu conjunto. E contra essa de pouco adiantam as
soluções cosméticas que têm sido tentadas nos últimos tempos. Para dar um eixo
ao País (e não a esse ou aquele governo em particular), carecemos mesmo é de
uma efetiva reinvenção da política, com a qual seja possível reformar
democraticamente o Estado.
Marco Aurélio Nogueira, Jornal da Tarde, São
Paulo, fev. 1999.
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