Enfim, o fato é que eu acreditava e
continuo acreditando que se a pessoa na ponta da rede, seja no Acre ou onde
quer que seja, se esta pessoa tiver vontade de passar a maior quantidade de
tempo possível praticando qualquer forma de expressão artística, seja encarando
páginas em branco, lapidando textos, lapidando filmes, treinando danças,
coreografias, teatro, seja praticando um instrumento musical (e quem toca
instrumentos musicais sabe a quantidade de horas de prática para se chegar à
liberdade de domínio do instrumento e de seu próprio corpo, os tais 99% de suor
para 1% de inspiração), quem quer que seja que encontre felicidade nestas horas
e horas de prática cotidiana artística deve produzir tais obras e não ser DUTO
de coisa alguma.
Pois existem pessoas no mundo que não têm este prazer de produção artística,
mas têm prazer em exibir, promover, e compartilhar estas obras. E tá tudo
certo. Temos diversos exemplos de pessoas assim: vejam a paixão com que o Leon
Cakof e a Renata de Almeida produziam e produzem a Mostra de São Paulo. O
pessoal da Mostra de Tiradentes. E de tantas outras. Existe paixão pra tudo. E
não, exibidores, programadores, curadores, professores, críticos de cinema ou
de arte não são artistas frustrados – mas pessoas cuja a paixão deles é esta:
analisar, comentar, debater, ensinar, deflagrar e ampliar o pensamento e a
reflexão sobre as diversos âmbitos de atuação humanos. Que bom que tem gente
com estas paixões tão complementares!
E o meu choque ao discutir com o Pablo Capilé foi ver que ele não tem paixão
alguma pela produção cultural ou artística, que ele diz que ver filmes é “perda
de tempo”, que livros, mesmo os clássicos, (que continuam sendo lidos e
necessários há séculos), são “tecnologias ultrapassadas”, e que ele
simplesmente não cultiva nada daquilo que ele quer representar. Nem ele nem os
outros moradores das casas Fora do Eixo (já explico melhor sobre isso).
Ou seja, ele quer fazer shows, exibir filmes, peças de teatro, dança,
simplesmente porque estas ações culturais/artísticas juntam muita gente em
qualquer lugar, que vão sair nas fotos que eles tiram e mostram aos seus
patrocinadores dizendo que mobilizam “tantas mil pessoas” junto ao poder
público e privado, e que por tanto, querem mais dinheiro, ou privilégios
políticos.
Vejam que esperto: se Pablo Capilé disser que vai falar num palanque, não iria
aparecer nem meia dúzia de pessoas para ouvi-lo, mas se disserem que o Criolo
vai dar um show, aparecem milhares. Ou seja, quem mobiliza é o Criolo, e não
ele. Mas depois ele tira as fotos do show do Criolo, e vai à Secretaria da
Cultura dizendo que foi ele e sua rede que mobilizou aquelas pessoas. E assim,
consequentemente, com todos os artistas que fazem participação em qualquer
evento ligado à rede FdE. Acredito que, como eu, a maioria destes artistas não
saiba o quanto Pablo Capilé capitaliza em cima deles, e de seus públicos.
Mesmo porque ele diz que as planilhas do orçamento do Fora do Eixo são
transparentes e abertas na internet, sendo isso outra grande mentira lavada –
tais planilhas não se encontram na internet, nem sequer os próprios moradores
das casas Fora do Eixo as viram, ou sabem onde estão. Em recente entrevista no
Roda Viva, Capilé disse que arrecadam entre 3 e 5 milhões de reais por ano.
Quanto disso é redistribuído para os artistas que se apresentam na rede?
O último dado que tive é que o Criolo recebia cerca de 20 mil reais para um
show com eles, enquanto outra banda desconhecida não recebe nem 250 reais, na
casa FdE São Paulo.
Mas seria extremamente importante que os patrocinadores destes milhões
exigissem o contrato assinado com cada um destes artistas, baseado pelo menos
no mínimo sindical de cada uma das áreas, para ter certeza que tais recursos
estão sendo repassados, como faz o SESC.
Depois deste choque com o discurso do Pablo Capilé, ainda acompanhei a dinâmica
da rede por mais alguns meses (foi cerca de 1 ano que tive contato constante
com eles), pois queria ver se este ódio que ele carrega contra as artes e os
artistas era algo particular dele, ou se estendia à toda a rede. Para a minha
surpresa, me deparei com algo ainda mais assustador: as pessoas que moram e
trabalham nas casas do Fora do Eixo simplesmente não têm tempo para desfrutar
os filmes, peças de teatro, dança, livros, shows, pois estão 24 horas por dia,
7 dias por semana, trabalhando na campanha de marketing das ações do FdE no
facebook, twitter e demais redes sociais.
E como elas vivem e trabalham coletivamente no mesmo espaço, gera-se um frenesi
coletivo por produtividade, que, aliado ao fato de todos ali não terem horário
de trabalho definido, acreditarem no mantra ‘trabalho é vida’, e não receberem
salário, e portanto se sentirem constantemente devedores ao caixa coletivo, da
verba que vem da produção de ações que acontecem “na ponta”, em outros
coletivos aliados à rede, faz com que simplesmente, na casa Fora do Eixo em São
Paulo, não se encontre nenhum indivíduo lendo um livro, vendo uma peça,
assistindo a um filme, fazendo qualquer curso, fora da rede. Quem já cruzou com
eles em festivais nos quais eles entraram como parceiros sabem do que estou
falando: eles não entram para assistir a nenhum filme, nem assistem/participam
de nenhum debate que não seja o deles. O que faz com que, depois de um tempo,
eles não consigam falar de outra coisa que não sejam eles mesmos.
Sim, soa como seita religiosa.
Eu comecei a questionar esta prática: como vocês querem promover a cultura, se
não a cultivam? Ao que me responderam “enquanto o povo brasileiro todo não
puder assistir a um filme no cinema, nós também não vamos”. Eu perguntei se
eles sabiam que havia mostras gratuitas de filmes, peças de teatro, dança,
bibliotecas públicas, universidades públicas onde pode-se assistir a qualquer
aula/curso – ao que me responderam que eles não têm tempo para perder com estas
coisas.
Pode parecer algo muito minimalista, mas eu acho chocante eles se denominarem o
“movimento social da cultura”, e não cultivar nem a produção nem o desfrute das
atividades artísticas da cidade onde estão, considerando-se mártires por isso,
orgulhando-se de serem chamados de “precariado cognitivo” (sem perceber o
tamanho desta ofensa – podemos nos conformar em viver no precariado material,
mas cultivar e querer espalhar o precariado de pensamentos, de massa crítica,
de sensibilidade cognitiva, é algo muito grave para o desenvolvimento de seres
humanos, e consequentemente da humanidade).
Concomitantemente a isso, reparei que aquela massa de pessoas que trabalham 24
horas por dia naquelas campanhas de publicidade das ações da rede FdE, não
assinam nenhuma de suas criações: sejam textos, fotos, vídeos, pôsters, sites,
ações, produções. Pois assinar aquilo que se diz, aquilo que se mostra, que se
faz, ou que se cria, é considerado “egóico” para eles. Toda a produção que
fazem é assinada simplesmente com a logomarca do Fora do Eixo, o que faz com
que não saibamos quem são aquele exercito de criadores, mas sabemos que estão
sob o teto e comando de Pablo Capilé, o fundador da marca.
E que não, a marca do fora do Eixo não está ligada a um CNPJ, nem de ONG, nem
de Associação, nem de Cooperativa, nem de nada – pois se estivesse, ele
seguramente já estaria sendo processado por trabalho escravo e estelionato de
suas criações, por dezenas de pessoas que passaram um período de suas vidas nas
casas Fora do Eixo, e saem das mesmas, ao se deparar com estas mesmas questões
que exponho aqui, e outras ainda mais obscuras e complexas.
Me explico melhor: existem muitos dissidentes que se aproximam da rede pois veem
nela a possibilidade de viver da criação e circulação artística, de modificar
suas cidades e fortalecer o impacto social da arte na população das mesmas, que
depois de um tempo trabalhando para eles percebem, tal qual eu percebi, as
incongruências do movimento Fora do Eixo. Que aquilo que falam, ou divulgam,
não é aquilo que praticam. É a pura cultura da publicidade vazia enraizada nos
hábitos diários daquelas pessoas.
E, além disso, o que talvez seja mais grave: quem mora nas casas Fora do Eixo,
abdicam de salários por meses e anos, e, portanto não têm um centavo ou fundo
de garantia para sair da rede. Também não adquirem portfólio de produção, uma
vez que não assinaram nada do que fizeram lá dentro – nem fotos, nem cartazes,
nem sites, nem textos, nem vídeos. E, portanto, acabam se submetendo àquela
situação de escravidão (pós) moderna, simplesmente, pois não veem como
sobreviver da produção e circulação artística, fora da rede. Muitas destas
pessoas são incentivadas pelo próprio Pablo Capilé a abandonar suas faculdades
para se dedicarem integralmente ao Fora do Eixo. Quanto menos autonomia
intelectual e financeira estas pessoas tiverem, melhor para ele.
E quando algumas destas pessoas conseguem sair, pois têm meios financeiros
independentes da rede FdE para isso, ficam com medo de retaliação, pois veem o
poder de intermediação que o Capilé conseguiu junto ao Estado e aos
patrocinadores de cultura no país, e temem serem “queimados” com estes. Ou
mesmo sofrer agressões físicas. Já três pessoas me contaram ouvir de um dos
membros do FdE, ao se desligarem da rede, ameaças tais quais “você está falando
de mais, se estivéssemos na década de 70 ou na faixa de gaza você já estaria
morto/a.” Como alguns me contaram, “eles funcionam como uma seita
religiosa-política, tem gente ali capaz de tudo” na tal ânsia de disputa por
cada vez mais hegemonia de pensamento, por popularidade e poder político,
capital simbólico e material, de adeptos. Por isso se calam.
Fiquei sabendo de uma menina que produziu o Grito Rock 2012 em Braga, em
Portugal, no qual exibiram meu filme. Ela me contou que estava de intercâmbio
da universidade lá, e uma amiga dela que havia sido “abduzida pelo Fora do
Eixo” entrou em contato perguntando se ela e um amigo não queriam exibir o
filme em Braga, produzir o show de uma banda na universidade, fazer a
divulgação destas ações nas redes sociais. Ela achou boa a idéia e qual não foi
sua surpresa quando viu que em todos os materiais de divulgação do evento que
lhe enviaram estava escrito “realização Fora do Eixo”. “Eu nunca fui do Fora do
Eixo, não tenho nada a ver com eles, como assim meu nome não saiu em nada? Não
vou poder usar estas produções no meu currículo? E pior, eles agora falam que o
Fora do Eixo está até em Portugal, e em sei lá quantos países. Isso é
simplesmente mentira. Eu não sou, nem nunca fui do Fora do Eixo.”
O que leva a outro ponto grave das falácias do Fora do Eixo: sua falta de
precisão numérica. Pablo Capilé, quando vai intermediar recursos junto ao poder
público ou privado, para capitalizar a rede FdE, fala números completamente
aleatórios “somos mais de 2 mil pessoas em mais de 200 cidades na América
Latina”. Cadê a assinatura destas pessoas dizendo que são realmente filiadas à
rede? Qualquer associação, cooperativa, partido político, fundação, ONG, ou
movimento social tem estes dados. Reais, e não imaginários.
Blog do Reinaldo Azevedo, Revista Veja, 08/08/2013.