A resposta de Madame Lagarde
Por Gustavo H. B. Franco, do Site Instituto Millenium,
4 de agosto de 2013
O ministro da Fazenda, Guido
Mantega, dirigiu uma carta à diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, em
julho de 2013, solicitando uma revisão metodológica no cálculo da Dívida Bruta
do Brasil. O organismo trabalha com um valor correspondente a 68% do PIB e as
autoridades brasileiras reconhecem apenas 58,7%. Logo abaixo, num exercício
inteiramente ficcional, imagina-se o teor de uma carta resposta, de caráter
pessoal e confidencial.
“Washington, 2 de agosto de 2013
Mon cher Guido,
Demos boas gargalhadas com a sua
mui amável carta trazendo o seu pedido para mudarmos a metodologia de apuração
da Dívida Bruta brasileira, que, de qualquer jeito, se me permite a piada
insolente, continua sendo uma bruta dívida por qualquer critério que possamos
escolher. Esteja certo que vamos trabalhar o assunto da maneira mais
conveniente para todos, pois, como você bem sabe, não há outra instituição
multilateral neste mundo de Deus que melhor compreenda a necessidade de as
autoridades jogarem para a torcida. Ademais, em condições normais, as queixas e
os pedidos que aparecem são sempre malcriados, pois, como sabemos, somos uma
organização que todos adoram detestar, aí incluídos os representantes que
mandam para cá.
Sei bem que o amigo anda
enfrentando críticas centradas nos dribles contábeis que vocês inventaram para
enfeitar os números fiscais. Aqui nesta casa, como você já terá observado
muitas vezes, todos somos admiradores do futebol arte, e nesse quesito vocês
são os indisputáveis campeões mundiais, os artistas que todos querem ver em
ação.
Pena que nos últimos anos, desde
a Copa de 1994, tenha havido certa “germanização” dos assuntos fiscais e
monetários contrariando a vocação brasileira para a criatividade. Nossos
analistas apaixonados pelo futebol brasileiro vinham se deslocando para a
cobertura dos jogos de Espanha, Itália, Portugal e Grécia, a fim de melhor
exercitar o fascínio pela inovação. Felizmente, todavia, graças ao trabalho de
vocês, esse longo inverno chegou ao fim. Desde os tempos do ministro Delfim, e
daquelas inesquecíveis cartas de pura embromação, nós não víamos nada tão
interessante. Dê os meus parabéns ao moço do Tesouro, ele tem um futuro
brilhante pela frente, talvez em Wall Street. Só posso imaginar o que será
capaz de fazer quando aprender sobre derivativos.
Deve ter sido ele o autor da
minha passagem favorita de sua carta, quando você diz que os títulos do Tesouro
na carteira do Banco Central “não têm natureza fiscal”. Que achado! Dívida de
natureza não fiscal seria como dinheiro de caráter não monetário. Ninguém do
“staff” tinha ouvido nada parecido, e seguramente a novidade vai causar
sensação na França, posso lhe garantir. Jean Baudrillard, caso estivesse vivo,
escreveria certamente sobre isso, nada pode ser mais pós-moderno e consistente
com sua semiótica do simulacro.
“Demos boas gargalhadas com a sua
mui amável carta trazendo o seu pedido para mudarmos a metodologia de apuração
da Dívida Bruta brasileira”
Veja, Guido, eu sou advogada, não
sei nada sobre números e, por isso, talvez não seja mesmo capaz de apreciar
como deveria o trabalho de vocês. Mas de contabilidade eu entendo uma coisa ou
outra, pois bastam as quatro operações e saber que a obrigação de um é a
riqueza de outro. Com esse pouquinho de conhecimento, consegui capturar a
malícia utilizada em seu texto quando você afirma que os títulos do Tesouro que
não estão “em poder do público” não devem estar na estatística de “dívida
bruta”. Está tudo dentro de casa, não é mesmo? O “staff” diz que é um tolo
argumento de senso comum, como costumam ser as grandes falácias em economia, o
que, para mim, soa como uma espécie de elogio a seu texto.
É claro que eles dizem um monte
de outras coisas horríveis de vocês, esses caras são pagos para achar defeito
nas coisas. A maior parte dessas mesquinharias é muito difícil para uma
advogada, mas o pedaço que eu entendi, eu não consigo contestar e, por isso,
preciso que você me ajude. Eles dizem que topam excluir da estatística da
dívida bruta qualquer coisa que você, Guido, possa cancelar sem que isso traga
qualquer implicação patrimonial para ninguém, como títulos em tesouraria. Mas
esse não é bem o seu caso, certo? Se você cancelar esses títulos que você quer
tirar da conta, você vai quebrar o Banco Central, não? Afinal, são cerca de R$
400 bilhões em títulos a cancelar no ativo e o patrimônio do BCB é de R$ 21,5
bilhões. Muito feio, não?
Mas quem se importa com o que diz
o “staff”. De minha parte, fico curiosa sobre o assunto, como dizem os
advogados, “por amor ao debate”. Importante mesmo é o que vai se passar diante
dos olhos do distinto público, a saber: vou lhe escrever uma carta com
felicitações pelos progressos alcançados no terreno fiscal, com uma reserva ou
outra para não ficar adulatório, e vou acrescentar que, mesmo reconhecendo os
méritos (vou precisar muito cuidado com a linguagem aqui) de seu pedido, não
podemos mudar nada de natureza metodológica que não seja aplicável para todo o
mundo, inclusive para aqueles alemães insuportáveis. Você sabe como é difícil
conversar desses assuntos com esse povo. J’adore quando você implica com eles e
com os americanos! Nisso você me faz lembrar o finado Jacques Rueff, ele não
era do seu tempo e foi uma lenda na França. É invenção dele a expressão
“privilégio exorbitante”, para provocar os americanos (e que virou título de um
livro recente do Barry Eichengreen, que trabalhou aqui conosco), mais ou menos
como você fez com a sua já consagrada “guerra cambial”.
Em ambos os casos, nós bem
sabemos que se trata apenas de uma tola frase de efeito para consumo da
imprensa não especializada e dos círculos alternativos, e Rueff não tinha nada
que ver com você: era um liberal de corte austríaco, seguidor de Von Mises,
apóstolo do padrão ouro e membro da Academia Francesa, onde ocupou a cadeira de
Jean Cocteau. Por isso, talvez o marechal De Gaulle o chamasse de “meu poeta
das finanças”.
Seu texto não tem lá muita
poesia, mas eu entendi bem o seu propósito. Eu escrevo a minha carta, você
continua a fazer a conta do jeito que você achar mais conveniente, e a vida
segue, cada um no seu quadrado.
Transmita meus cumprimentos à sua
equipe, aos quais se junta o nosso querido DSK que apenas alerta para os riscos
do excesso de maquiagem.
Um último ponto, já ia me
esquecendo: obrigada pela sua rápida intervenção no affaire do pacote grego.
Era só o que faltava, não é? Nunca sentimos tantas saudades do finado Alexandre
Kafka, um homem gentil e sensato. Sei que vocês querem esse rapaz longe daí,
mas você não acha que já sofremos o suficiente?
Cordialmente,
Christine.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário