SEM "ARGENTINIZAÇÃO"
Há países que, comparativamente
às nações desenvolvidas, se caracterizam por ter instituições frágeis. A
vigência da "rule of Law" se manifesta no grau de maior ou menor
discricionariedade em mãos das autoridades. Em países evoluídos, o cidadão e a
empresa têm obrigações, mas têm direitos que são respeitados e, dadas regras do
jogo claras, os indivíduos e as firmas têm condições de evoluir e progredir. Já
nos países menos desenvolvidos, é o poder do príncipe (ou da princesa) que dá
as cartas. No limite, vale a velha regra: L'État c'est moi (o Estado
sou eu).
A Argentina virou um
"case" de esgarçamento dos princípios que devem reger o funcionamento
de uma República. O país se transformou num verdadeiro unicato, onde cada
vez mais tudo depende dos desígnios de uma soberana.
A democracia corre perigo nessas
circunstâncias, não porque as decisões não espelhem a vontade da maioria - não
há a menor dúvida de que Cristina Kirchner conta com apoio majoritário da
população -, mas porque há princípios de convivência entre forças diferentes
que foram sendo sucessivamente deixados de lado.
Três pontos chamam a atenção na
realidade política do país vizinho. Primeiro, o fato de a inflação oficial ter
virado uma ficção, que vem sendo passivamente aceita como parte do funcionamento
normal de um país. Trata-se de uma aberração. Embora sejam questões de graus de
gravidade obviamente diferentes, a mesma sociedade que no tempo dos militares
passava pela Escuela de Mecánica de la Armada - a terrível e temida Esma, de
triste memória, convertida em centro de desaparecimento de pessoas - hoje
convive, como se fosse natural, com uma inflação oficial que há vários anos
subestima flagrantemente a realidade. É uma espécie de "realidade
paralela" na qual se finge acreditar - mesmo que todos saibam que é falsa,
numa espécie de loucura coletiva que demonstraria a vigência da velha piada de
que "donde acaba la razón, empieza la Argentina".
O segundo ponto-chave da situação
Argentina é a demonização da crítica. Ao longo dos anos e do governo dos dois
membros do casal reinante - Nestor e Cristina -, o "demônio" assumiu
diversas caras, não necessariamente partidárias. Ora foi a Igreja; ora o campo;
algumas vezes, uma figura específica; em épocas eleitorais, os partidos
adversários do governo; e, mais recentemente, a Espanha. O fato é que no país
se vive permanentemente um clima de rivalidade e tensão que cria o ambiente no
qual germina todo tipo de tentação autoritária.
Nesse contexto, um grupo de
"piqueteros" um dia queima um posto de gasolina que desrespeitara o
congelamento de preços na época imposto pelo governo; um secretário com
"status" político de ministro é visto na rua batendo fisicamente em
manifestantes de um partido de oposição; ou o ministro de Economia se sente à
vontade para comparar personagens críticos das ações governamentais aos
nazistas, como forma de embasar atitudes que visam simplesmente à proscrição de
quem diverge do pensamento oficial.
Finalmente, o terceiro elemento
crítico do que se poderia chamar de "modelo político argentino" é a
tentativa de controle da mídia. Da postura autoritária das autoridades que se
recusam até mesmo a dialogar com alguns jornalistas com a frase de que "con
vos yo no hablo" até a tentativa de esmagar certos jornais mediante o
objetivo de vender a eles papel a preços proibitivos, passando pelas alusões ao
"monopólio" doClarín - algo grotesco, em face da concorrência
que existe entre diferentes jornais - e ao tom das acusações contra o Clarín e La
Nación provinda de blogueiros oficiais crescentemente hostis, criou-se um
clima de guerra que está tornando cada vez mais rarefeita a possibilidade de
convivência. Nesse contexto, mais de um jornalista tem sido tratado por pessoas
comuns com uma agressividade simplesmente desconhecida num país normal.
O Brasil precisa estar atento ao
que ocorre na Argentina, porque aqui há grupos "heavy metal" no País
que gostariam de poder implantar aqui as mesmas práticas.
A presidente Dilma Rousseff, em
atitude que honra o seu governo, tem repelido qualquer tentativa de avançar por
caminhos similares aos dos vizinhos e tornou-se fiadora das boas regras de
convivência. Entretanto, a combinação de simpatia notória de alguns grupos pelo
modelo argentino; dificuldades de aceitação da crítica por parte desses grupos;
e tentativas explícitas de controle da mídia que recorrentemente aparecem no
noticiário indicam que o risco de "argentinização" do processo
político brasileiro não é nulo.
Daí por que é necessário manter a
vigilância para evitar que certas regras sejam quebradas. A postura republicana
da presidente Dilma na sua relação com a oposição e a bela faxina que o sempre
correto ministro Paulo Bernardo fez ao deixar de lado ideias autoritárias
emanadas de setores anteriormente próximos à sua pasta merecem elogios.
É necessário que tal atitude seja
preservada, para que o Brasil continue a se diferenciar de alguns dos seus
vizinhos barulhentos.
ESTADO DE SÃO PAULO / OPINIÃO / FÁBIO GIAMBIAGI / "SEM ARGENTINIZAÇÃO".
Nenhum comentário:
Postar um comentário