LULA E NOSSO FUTURO COMUM
Estadão, 08.06.2012.
O ponto de partida é uma frase de Lula: "Não deixarei
que um tucano assuma de novo a Presidência". Lembro, no entanto, que não
sou de pegar no pé de Lula por suas frases. Cheguei a propor um "habeas
língua" para o então presidente na sua fase mais punk, quando disse que a
mãe nasceu analfabeta e que se a Terra fosse quadrada a poluição não circularia
pelo mundo. Lembro também que hoje concordo com o filósofo americano Richard
Rorty: não há nada de particular que os intelectuais saibam e todo mundo não
saiba. Refiro-me à ilusão de conhecer as leis da História, deter segredos
profundos sobre o que dinamiza seu curso e dominar em detalhes os cenários
futuros da humanidade.
Nesse sentido, a eleição de Lula, um homem do povo, sem
educação formal superior, não correspondeu a essa constatação moderna de Rorty.
Isso porque, apesar de sua simplicidade, Lula encarnava a classe salvadora no
sonho dos intelectuais, via luta de classes como dínamo da História humana, e
traçava o mesmo futuro paradisíaco para o socialismo. Na verdade, Lula falava a
linguagem dos intelectuais. Seus comentários que despertaram risos e ironias no
passado eram defendidos pelos intelectuais com o argumento de que, apesar de
pequenos enganos, Lula era rigorosamente fundamentado na questão essencial: o
rumo da História humana.
A verdade é que a chegada do PT ao poder o consagrou como um
partido social-democrata e, ironicamente, a social-democracia foi o mais
poderoso instrumento do capitalismo para neutralizar os comunistas no movimento
operário. São mudanças de rumo que não incomodam muito quando se chega ao
poder. O capitalismo é substituído pelas elites e o proletariado salvador,
pelos consumidores das classes C e D. Os sindicalistas vão ao paraíso de acordo
com os critérios da cultura nacional, consagrados pela canção: É necessário uma
viração pro Nestor,/ que está vivendo em grande dificuldade.
Se usarmos a fórmula tradicional para atenuar o discurso de
Lula, diremos que o ex-presidente queria expressar, com sua frase sobre um
tucano na Presidência, que faria todo o esforço para a vitória do seu partido e
para esclarecer os eleitores sobre a inconveniência de eleger o adversário.
Lula sabe que ninguém manda no processo eleitoral. São os eleitores que decidem
se alguém ocupará a Presidência. Foi só um rápido surto autoritário, talvez
estimulado pelo tom de programa de TV, luzes e uma plateia receptiva.
Se o candidato tucano for, como tudo indica, o senador Aécio
Neves, também eu, em trincheira diferente da de Lula, farei todo o esforço para
que o tucano não chegue à Presidência. Aécio foi um dos artífices na batalha
para poupar Sérgio Cabral da CPI e confirmou, com essa manobra, a suspeita de
que não é muito diferente do PT no que diz respeito aos critérios de alianças e
ao uso da corrupção dos aliados para fortalecer seu projeto de poder. Tudo o
que se pode fazer, porém, é tornar clara a situação para o eleitor, pois só
ele, em sua soberania, vai decidir quem será o eleito.
Na verdade, essa batalha será travada também na esfera da
economia. Vivemos um momento singular na História do mundo. A crise mundial
opõe defensores da austeridade, como Angela Merkel, e os que defendem mais
gastos e investimentos, dentro da visão keynesiana de que a austeridade deve
ser implantada no auge do crescimento, e não durante o período depressivo. O PT
dirigiu o País num período de crescimento e muitos gastos, não tanto no
investimento, mas no consumo. É possível que esse modelo de estímulo à economia
tenha alcançado seus limites.
Muito possivelmente, ainda, o curso dos acontecimentos não
dependerá tanto da vontade de Lula nem dos nossos esforços individuais. A
democracia prevê alternância no poder. E a análise de como essa alternância se
dá na prática revela, em muitos casos, uma gangorra entre austeridade e
gastança. De modo geral, a crise derrota um governo austero e coloca seu oposto
no poder, como na França. Mas às vezes derrota um governo social-democrata e
elege seu adversário direto, como na Espanha.
Pode ser que o esgotamento do modelo de estímulo ao consumo
abra espaço para discurso de reformas fiscal e trabalhista, de foco em educação
e infraestrutura, enfim, de uma fase de austeridade. E não é totalmente
impossível que um partido de oposição chegue ao governo. Restaria ao PT, nesse
caso, um grande consolo: ao cabo de um período de austeridade, o partido teria
grandes chances de voltar ao poder com seu discurso do "conosco ninguém
pode", do "vamos que vamos", "nunca antes neste
país"... Não estou afirmando que esse mecanismo vai prevalecer, é uma das
possibilidades no horizonte. A outra é o próprio PT assumir algumas das
diretivas de austeridade e conduzir o processo sem necessariamente deixar o
poder.
Por mais que a crise seja aguda, o apelo ao consumo e à
manutenção de intensas políticas sociais é muito forte na imaginação popular. O
discurso de austeridade só tem espaço eleitoral quando as coisas parecem ter
degringolado.
O futuro está aberto e não será definido pela exclusiva
vontade de Lula. Com todo o respeito ao Ratinho e sua plateia, o povo
brasileiro é mais diverso e complexo. Se é verdade que a História não se define
nas academias intelectuais, isso não significa que ela tenha passado a ser
resolvida nos programas de auditório.
No script do socialismo real o proletariado foi substituído
pelo partido, o partido pelo comitê central e o comitê central por um só homem.
No script da social-democracia tropical Lula substituiu o proletariado, o
partido, o comitê central e o próprio povo brasileiro ao dizer que não deixará
um tucano voltar à Presidência. Se avaliar com tranquilidade o que disse, Lula
vai perceber que sua frase não passa de uma bravata.
O que faz um homem tão popular e bem-sucedido bravatear no
Programa do Ratinho é um mistério da mente humana que não tenho condições de
decifrar. A única pista que me vem à cabeça está na sabedoria grega: os deuses
primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir.
O ESTADO DE SÃO PAULO / OPINIÃO / FERNANDO GABEIRA / LULA E NOSSO
FUTURO COMUM / 08.06.2012.
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